Dia: fevereiro 11, 2014
‘Come Down to Us’, Burial
“Vollmer entrou numa fase estranha. Ele agora passa o tempo todo à janela, olhando para a Terra lá embaixo. Fala pouco ou fica calado. Só quer olhar, nada mais que olhar. Os oceanos, os continentes, os arquipélagos. Estamos configurados no que é chamado de série de órbitas cruzadas, de modo que giramos em torno da Terra em trajetórias que não se repetem. Ele fica sentado, olhando. Como à janela, verifica as listas de tarefas à janela, quase sem olhar para as folhas de instruções enquanto sobrevoamos tempestades tropicais, queimadas, grandes pastagens. Fico aguardando que ele retome seu hábito de antes da guerra, de usar expressões insólitas para descrever a Terra: uma bola de praia, uma fruta amadurecida pelo sol. Mas ele fica só olhando pela janela, comendo biscoitos de amêndoas, enquanto o papel que embrulhava os biscoitos flutua ao seu redor. A vista claramente preenche sua consciência. É poderosa o bastante para calá-lo, para silenciar a voz que sai do céu de sua boca, para deixá-lo sentado de lado em sua cadeira, numa posição desconfortável, por horas a fio.
A vista é uma fonte inesgotável de gratificação. É como a resposta a toda uma vida de perguntas e anseios vagos. Ela satisfaz toda a curiosidade infantil, todo o desejo silenciado, todas as facetas de Vollmer, de cientista, poeta, profeta primitivo, contemplador de fogo e de estrelas cadentes, todas as obsessões que absorvem o lado noturno de sua mente, todos os anseios doces e sonhadores que ele sentiu na vida por lugares distantes sem nome, todo e qualquer sentimento telúrico que ele tenha, o pulso neural de alguma consciência mais selvagem, uma empatia pelos animais, toda e qualquer crença numa força vital imanente, o Senhor da Criação, quaisquer ideias secretas da unidade da espécie humana, todo e qualquer desejo e esperança singela, tudo o que há de excessivo e insuficiente, tudo ao mesmo tempo e pouco a pouco, toda e qualquer ânsia ardente de fugir da responsabilidade e da rotina, fugir de sua própria especialização excessiva, o eu circunscrito e ensimesmado, todo e qualquer resquício de seu desejo infantil de voar, seus sonhos de espaços estranhos e altitudes estonteantes, suas fantasias de uma morte feliz, toda e qualquer tendência indolente e sibarítica – comedor de lótus, fumante de ervas, contemplador do espaço com olhos azuis – tudo isso é satisfeito, tudo se reúne e comprime naquele corpo vivo, a vista que ele vê da janela.
‘É tão interessante’, ele diz por fim. ‘As cores, e tudo.’
As cores, e tudo.”
(Don DeLillo, Momentos Humanos na Terceira Guerra Mundial)
‘Kevin Carter’, Manic Street Preachers
“Kevin Carter (13 September 1960 – 27 July 1994) was an award-winning South African photojournalist and member of the Bang-Bang Club. He was the recipient of a Pulitzer Prize for his photograph depicting the 1993 famine in Sudan. He committed suicide at the age of 33. Portions of Carter’s suicide note read: ‘I am depressed … without phone … money for rent … money for child support … money for debts … money!!! … I am haunted by the vivid memories of killings and corpses and anger and pain … of starving or wounded children, of trigger-happy madmen, often police, of killer executioners … I have gone to join Ken if I am that lucky.’ (Wikipedia)
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Deixe-me explicar o que aconteceu: eu estava passando os olhos numa matéria especial da NME sobre 1994 [naquela linha nonsense “o ano que mais mudou o rock em todos os tempos se excluirmos do calendário 1990, 1989, 1982, 1977, 1971, 1969, 1968, 1967, 1966 etc”] quando lembrei de textos que li naquela época, na biblioteca da Cultura Inglesa, sobre o The Holy Bible, do Manic Street Preachers. Tentem imaginar um mundo sem internet: os alunos do curso de inglês tinham acesso aos semanários de música, mas não à maior parte dos discos resenhados naquelas páginas. The Holy Bible nunca chegou às lojas de Brasília. Everything Must Go, o seguinte da banda, também não. Eu sabia quase tudo sobre eles, e até os amava, sem saber como soavam.
Algum tempo depois, ouvi os discos do MSP que foram lançados por aqui, a partir de This is My Truth, Tell Me Yours (esse eu sempre achei um daqueles álbuns balofos, desproporcionais, apesar de gostar de algumas músicas), e aos poucos aquela banda interessante – no papel – que conheci aos 15 anos foi perdendo a graça. Ouvi algumas músicas de The Holy Bible e Everything Must Go sem prestar atenção a elas. Até que, finalmente, na semana passada, depois da leitura da edição especial da NME, voltei a eles. The Holy Bible me pareceu turrão e limitado (em arranjos e melodias, em tudo), mas Everything Must Go me deixou bobo. É bonito demais.
Engraçado que não sei se eu teria gostado tanto dele dele em 1995, quando os discos irônicos e cheios de maneirismos me alegravam bem mais. Everything Must Go é de uma ausência de cinismo que soaria, ao menos para mim, de uma ingenuidade tremenda. É um disco sinceramente de rock, digamos, sincero de arena que só poderia ter sido escrito desse jeito (sincero) no contexto em que foi feito (após o desaparecimento de um dos integrantes da banda; e nem estamos falando em morte, em luto, mas numa espécie de estado de suspense, algo mais misterioso e tenso) e que enquadra precisamente uma um certo sentimento de valentia, da coragem de, depois de um trauma ainda nebuloso, se encantar novamente pela rotina – e, no caso, uma rotina feita de clichês do rock, acordes maiores, refrãos populistas, arenas.
O entusiasmo pela vida, que transborda no disco, é quase inocente, direto, ele está lá a todo momento; raríssimo, portanto. O modo vibrante como se canta cada verso de cada música trai os temas sombrios das letras, e isso a gente nota até na batida ansiosa das mãos nas cordas da guitarra [como se não houvesse amanhã] e em outros detalhes que precisam ser ouvidos e não descritos.
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Kevin Carter
Hi Time magazine hi Pulitzer Prize
Tribal scars in Technicolor
Bang bang club AK 47 hour
Kevin Carter
Hi Time magazine hi Pulitzer Prize
Vulture stalked white piped lie forever
Wasted your life in black and white
Kevin Carter
Kevin Carter
Kevin Carter
Kevin Carter
Kevin Carter
Kevin Carter
Kevin Carter
The elephant is so ugly he sleeps his head
Machetes his bed Kevin Carter kaffir lover forever
Click click click click click
Click himself under
Kevin Carter
Kevin Carter
Kevin Carter