Dia: fevereiro 15, 2012
♪ | Old Ideas | Leonard Cohen
Nos primeiros versos da música Going home, que abre o disco Old Ideas, Deus admite: “Eu amo conversar com Leonard. Ele é um atleta e um pastor. Um depravado preguiçoso vestido em terno”. Em seguida, o (eu suponho) todo-poderoso trata de explicar a admiração por nosso mais querido outsider: “Mas ele sempre fala tudo o que eu mando, mesmo quando as notícias não são boas. Ele nunca vai ter a liberdade para recusar.” Eis o pacto sinistro.
A voz divina (e divinamente rouca, as always) descreve Leonard Cohen — que, na capa de seu 12º álbum de estúdio, aparece num jardim, pernas cruzadas, lendo um livro, de chapéu preto e gravata. É, perceba, uma maneira inusitada de abrir um disco. Mas o monólogo celestial mostra que, aos 77 anos, o autor de tantas canções de love and hate se sente confortável para brincar com a imagem que a cultura pop — e ele próprio — criaram para representá-lo.
É essa persona soturna, mas também autoirônica (mais esperta, portanto, que o resenhista que trata este disco como uma obra solene, blindada, perfeita), que “atua” nessas 10 canções. O título alerta: são ideias antigas, sem novidades, ali mofando décadas a fio. Tudo igualzinho: Deus tá lá no céu, observando e nos julgando/condenando e usando Leonard para enviar mensagens sonoras aos homens imperfeitos na Terra. Ao mesmo tempo, algo muda: esse som divinal, desta vez, me parece um tanto mais mundano e gracioso, ainda que quase banal (um sonho: um disco de Leonard Cohen com acompanhamento/composições do Lambchop). Piano, violão, guitarra, percussão discretíssima e vocais femininos enevoam sutilmente as melodias, sem saudade (aleluia!) dos sintetizadores kitsch de Ten New Songs (2001) ou da frouxidão harmônica de Dear Heather (2004).
Milagroso é como Cohen ainda encontra mistérios em uma paisagem tão antiga, inventada por ele próprio há quatro décadas. Ainda é amável, sim, a conversa de Leonard.
Décimo segundo disco de Leonard Cohen. 10 faixas, com produção de Ed Sanders. Lançamento Columbia. B
livro | Festa no covil
O que você faria se o seu filho (ou o irmão pequeno, ou o sobrinho) pedisse um hipopótamo anão da Libéria? O pai de Totchli, narrador-mirim do livro Festa no covil, decide fazer valer o desejo do menino. Não só esse, mas todos – porque, claro, ele é um homem muito rico. E também por acreditar (e isto ele vive dizendo) que, quando não se pode ir à montanha, é possível fazer a montanha andar.
Como encontrar e capturar o bicho? A pergunta intriga Totchli. O garoto só pensa nela. Quem lê o romance, no entanto, tem outras dúvidas. Por exemplo: por que essa criança não tem amigos? O que explica o fato de ela estudar em casa, e não numa escola? Ela mora num palácio de verdade, cercado por leões e tigres, ou inventa uma realidade à semelhança dos desenhos animados?
As respostas acabam aparecendo — nas entrelinhas, vazando nas frestas da fala de Totchli. É um tema delicado. Página a página (e são poucas: 88), descobrimos estupefatos que o herói do livro é filho de um traficante poderoso, que o mantém preso numa mansão kitsch e o ensina — entre outras lições — a odiar os gringos americanos, a valorizar a lealdade e a matar gente. Enquanto isso, o escritor mexicano Juan Pablo Villalobos, estreante em ficção, usa um ponto de vista infantil para observar (de solsaio) a crise de um país.
Mas e o hipopótamo anão da Libéria? Ele está em todo canto, no começo, no meio e no fim da história – porque, vale repetir, Totchli só quer saber dele. A sanguinolência do cotidiano, que machuca a sensibilidade do leitor, se tornou tão comum para o menino que ele mal se deixa afetar por ela. Dezenas de pessoas perambulam nos cômodos do casarão: seu professor particular, empregados, prostitutas, políticos. Enquanto a tevê exibe notícias policiais, ele joga Playstation, coleciona chapéus e pesquisa palavras no dicionário. Gosta das mais difíceis, como sórdido, patético ou nefasto.
No posfácio do livro, o escritor inglês Adam Thirlwell elogia a gana experimental do texto de Villalobos. A micronarrativa do mexicano, segundo Adam, se apropria de um gênero pulp (a narcoliteratura) de uma forma absolutamente original — já que este estupendo Festa no covil, indicado ao First Book Award do jornal The Guardian, é também um conto familiar, que o escritor concebeu para alertar o filho recém-nascido sobre a perda da inocência, a sedução do poder, a solidão e as contradições sociais de um país tão ferido quanto ameaçador.
A linguagem do livro, segundo Thirlwell, se mostra “uma coisa precária, insensível, inocente, perturbada, opaca, devastada”. Totchli, apesar de precoce, ainda é uma criança. Ao transferir esse olhar enclausurado como que diretamente para o papel, sem anestesia, Villalobos sugere um contexto tão repugnante que, nos momentos mais tétricos, obriga o leitor a desviar o olhar. O menino, no entanto, assiste à selvageria dos adultos como quem passa os olhos em mais um filme de samurai. Não é nada, não é nada. Principalmente quando se tem hipopótamos anões na Libéria.
(Fiesta en la Madriguera/Down the Rabbit Hole, 2010). De Juan Pablo Villalobos. Tradução de Andreia Moroni. Companhia das Letras. A
cine | 50/50
Quanto mais penso no filme choroso que 50/50 poderia ter sido (se dirigido por, digamos, Lasse Hallström), mais me simpatizo por ele. Aliás, a afeição se torna fácil quando percebemos que o roteiro (de Will Reiser, um iniciante) e a direção (de Jonathan Levine, que fez o igualmente arejado The Wackness, que vi numa edição do FicBrasília) estão sempre atuando de forma a descontrair uma premissa que é, por natureza, trágica (resumindo o script: rapaz atlético, boa-praça, genro-do-ano, saúde de ferro, descobre que tem 50% de chances de sobreviver a um câncer).
Quem espera o martírio de um drama hospitalar acaba encontrando, por isso, um longa sereno e relaxado (quase sempre no bom sentido), curioso por temas que tangenciam a trama principal: as relações que se estreitam ou se rompem numa situação-limite, os compromissos familiares,os momentos de espera e preparação para as piores etapas do tratamento médico… Parece simples (e cá está um filme que quer parecer simples), mas quantos outros cancer movies ignoram a obrigação de ir construindo o enredo que nos torture gloriosamente num clímax catártico banal?
Outra particularidade é o olhar de jovem-macho que o filme banca com muita clareza, idealizando toscamente a figura feminina (Anna Kendrick é a musa dócil, em oposição à imagem da namorada traiçoeira e insensível) e tratando a amizade mano-a-mano quase como um bromance de adolescência (e Seth Rogen, como sempre, se presta bem ao papel do amigo bronco-porém-fiel). Existe espontaneidade nessa atmosfera juvenil, como se o filme tivesse sido escrito em cômodos de alojamento universitário. Tem uma qualidade que se tornou rara na indielândia: é fluente, e parece (mesmo quando imaturo) de uma franqueza inatacável.
(50/50, EUA, 2011) De Jonathan Levine. Com Joseph Gordon-Levitt, Seth Rogen e Anna Kendrick. 100min. B