Dia: fevereiro 12, 2012

cine | A invenção de Hugo Cabret

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Até agora, parecia possível organizar os filmes recentes de Martin Scorsese em dois compartimentos: um deles era reservado às criações do ficcionista intenso, exuberante; o outro, às sóbrias master classes de um documentarista que usava formatos convencionais para descrever a trajetória de tipos ilustres (Bob Dylan, George Harrison) e ensinar sobre a história do cinema. Eis que, como num número de ilusionismo, A Invenção de Hugo Cabret chega para sobrepor essa faceta àquela: é, como um amigo resumiu, A Personal Journey with Martin Scorsese Through Early Movies, FOR KIDS.

O que seria apenas um filme “família” em 3D (e é mais ou menos assim que o diretor descreve o longa) se transforma, assim, num projeto mais complexo e importante – que periga ser tratado, pelos fãs do cineasta, como uma obra autorreferencial, um espelho mágico para o próprio Scorsese, haja vista a quantidade de vezes que o diretor acena para a própria trajetória e para temas que aparecem tanto em seus longas de ficção quanto nos documentários. O que temos aqui, num sinopse até meio grosseira, é a aventura de um menino órfão, um “outcast” como tantos que o diretor filmou, que encontra no cinema um elo entre o passado (é nos filmes antigos, perdidos, que ele procura sinais do pai morto) e o futuro (são esses mesmos filmes que ajudam a formar a personalidade do garoto). Difícil não identificar o nome SCORSESE brilhando nas entrelinhas da trama.

A primeira parte da narrativa, quando esse menino tenta descobrir um enigma deixado pelo pai, tem menos força que a segunda, quando o tema passa a ser o início do cinema, com um tributo ao poder encantatório dos filmes de Georges Méliès e dos irmãos Lumière, produzidos numa época em que cinema ainda era visto inocentemente, como um brinquedo de parte de diversão. Um desequilíbrio até previsível, já que fica fácil identificar por qual dos trechos Scorsese mais se interessa.

O legado de Méliès e Lumière, aliás, orienta as escolhas técnicas do filme. O diretor usa o 3D digital com um propósito muito específico: o de criar conexões entre o deslumbramento tecnológico do século 21 e a própria invenção do cinema, uma “máquina de sonho” (como um dos personagens define, a certa altura). Mais do que qualquer outro filme pós-Avatar (mais até do que o próprio Avatar), neste aqui o 3D ganha um aspecto metalinguístico, artístico – e, como se não bastasse, Scorsese parece se divertir criando cenas que testam as possibilidades do recurso visual, alternando o estica-e-puxa da profundidade de campo com elementos de cena que “flutuam” diante dos olhos do público. A sequência de abertura, um “tour” na locação principal do filme (uma estação de trem), sintetiza a intenção número 1 do cineasta: nos deslumbrar enquanto teoriza sobre as “técnicas de deslumbramento” do cinema.

Impressiona. Mas é na segunda metade (quando já conhecemos o espaço onde os personagens vivem e o filme decola, enfim) que o diretor tira o coelho da cartola: vai perfurando a trama com minidocumentários sobre a história dos primeiros filmes silenciosos (especialmente os de Méliès, um dos personagens da trama) e com lições sobre preservação de películas (numa das cenas, um personagem olha para a câmera e ensina a molecada a cuidar bem de filmes velhos). Eu poderia escrever um texto longo comparando o didatismo sólido de Scorsese (que não se deixa levar por generalizações) com o discurso tatibitate de O Artista – mas fica para a próxima. O que embasbaca neste filme é o domínio técnico e estilístico de Scorsese, capaz de compor uma fábula cheia de fofurices infantojuvenis para filhos, pais & vovós (com a finesse visual de um, digamos, Harry Potter & as Relíquias do Cinema Mudo) e, ao mesmo tempo, criar um ensaio sobre cinema que só ele poderia ter feito – já que, repito, parece prolongar as experiências do diretor com documentários sobre o tema.

Quem acusa Scorsese de ter se convertido, desde os anos 90, num cineasta profissional “a todo custo”, negociando confortavelmente com os padrões dos grandes estúdios, vai encontrar nesta superprodução Oscar-friendly um inimigo perfeito. Cá pra mim, A Invenção de Hugo Cabret representa o reflexo mais preciso de uma fase serena, tecnicamente inatacável, porém sinuosa e cheia de armadilhas – em que um filme industrial não é somente aquilo que parece ser (e aquilo que o estúdio quer nos vender, ainda que seja também isso), exigindo do espectador a disposição de procurar na imagem sentidos mais profundos. No caso, os óculos 3D ajudam.

(Hugo, 2011) De Martin Scorsese. Com Asa Butterfield, Chloe Grace Moretz, Ben Kingsley e Sacha Baron Cohen. 126min. A

[mário de andrade]

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“Quando me iniciei fazendo versos, reuni meus melhores sonetos, o que eu supunha fosse o melhor, e mandei-os em carta a Vicente de Carvalho, pedindo-lhe opinião. Ainda não publicara coisa nenhuma, a não ser alguns sonetos em revistecos sem importância. Vicente nunca me respondeu. Cheguei a ir à casa dele para retirar a limpo se morava mesmo lá, ou se estava em São Paulo. Estava. Deve ter recebido a carta registrada e… sei que não respondeu. Como gosto muito da poesia dele, até agora sofro disso”

“Quando releio coisas passadistas minhas tenho a impressão do Mário de Andrade que fui na casa dos vinte. Um sujeito grandão, feio como o diabo, almofadinha usando com exagero as modas do dia, desengraçado de corpo, com olhar apagado, no princípio uma cabelama enorme que não havia meios de ficar quieta, um tipo antipático porém que tinha um certo sal, dava vontade da gente saber mesmo o que ele é”

[Mário de Andrade, em entrevista e carta, no livro 1922 – A Semana que Não Terminou, de Marcos Augusto Gonçalves]