Dia: fevereiro 3, 2012

cine | Millennium – Os homens que não amavam as mulheres

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Os livros da série Millennium são best sellers que não provocam repulsa em quem diz detestar best sellers: ainda que vendam o tipo de conteúdo “pulp” que predomina nas prateleiras de thrillers, eles são escritos com uma prosa clara, sem excesso de lugares comuns, por vezes até elegante (o autor, Stieg Larsson, era um repórter de prestígio na Europa) e, portanto, mais respeitável que os garranchos de um, digamos, Dan Brown.

E mais: na trama, que atualiza alguns métodos herdados de Agatha Christie e Arthur Conan Doyle, o personagem principal, um jornalista ético e combativo, é um mascote que o escritor cria para criticar a cobertura econômica chapa-branca que a imprensa europeia geralmente pratica. Esse tipo honesto acaba por investigar casos de abusos contra mulheres. Temas importantes, que incluem a trilogia na categoria de obra-literária-para-resenhas-em-revistas-semanais.

O aspecto mais atraente e “vendável” dos livros, no entanto, é bem outro: a relação de amizade/parceria/paixão entre esse herói da mídia investigativa e uma hacker arredia, ambígua e superesperta, que todo jornalista gostaria de ter como assistente.

Podemos ler a trilogia de, pelo menos, três formas: são love stories, thrillers de mistério e dramas sociais (o primeiro livro chega a listar estatísticas sobre crimes contra mulheres suecas). É o acúmulo dessas intenções que, creio eu, faz dele um produto com potencial para fazer a conexão entre o leitor de um Philip Roth e aquele que deseja apenas experimentar as sensações de uma “junk fiction”: medo, aflição, diversão.

Explico tudo isso para que vocês entendam por que vejo como muito apropriada a escolha de David Fincher para dirigir a adaptação norte-americana do primeiro livro da série: ele é um dos poucos cineastas que seriam capazes de transferir para o cinema não apenas a trama de Larsson, mas todo esse “crossover” pop comercial. Cá está: um diretor respeitável, de prosa fluente e “legível”, cravando os dentes num produto de entretenimento, e estampando nele uma certa grife.

O filme sueco não tem (nem seria capaz de ter) esse grau de afinidade com os originais. Fincher é, até por obrigações que são comuns a esse tipo de projeto, “fiel” à trama (e, nesse aspecto, antes que me perguntem, o filme a segue até excessivamente), mas o que me impressiona é como ele, talvez inconscientemente, consegue adaptar por completo o tom do livro: faz um thriller “respeitável”, com uma caligrafia fluente, sobre um punhado de intrigas de folhetim.

É possível pensar em muitas ligações entre este filme e elementos que são recorrentes na obra de Fincher: a personagem da hacker Lisbeth Salander, por exemplo, é a nova sócia em um clube de solitários e “outsiders” que já incluía Ellen Ripley (Alien 3), o serial killer de Seven, o herói masoquista de Clube da Luta e Mark Zuckerberg (A Rede Social). Outra tentação é criar uma comparação entre a investigação inconclusa, lacunar, de Zodíaco e o excesso de explicações e “conclusões” de Millennium. Mas prefiro encarar este filme como um “blockbuster” de Fincher, à la O Quarto do Pânico, em que as habilidades técnicas do diretor se tornam mais decisivas que o olhar criativo do autor.

Exatamente como o livro, aliás, o filme usa a aptidão narrativa e um espírito bem jornalístico (de denunciar abusos, maus tratos) para justificar cenas que, numa produção menos sofisticada, seriam interpretadas simplesmente como exercícios de sadismo e grosseria. Fincher às vezes se diverte (na sequência de abertura, no clímax, quando usa Enya como música-tema para um assassino), às vezes se limita a fazer o trabalho da maneira mais correta possível. Preserva, ainda assim, uma das boas provocações do livro: a misoginia europeia sobreviveu ao fim do nazismo, e hoje se esconde nos apartamentos de cidadãos aparentemente responsáveis e bondosos.

Um dos meus problemas com o livro é que ele parece-me irregular, começando bem e terminando não tão bem. Nas últimas páginas, o livro me deixa com a impressão de que Larsson está se apressando para encerrar a trama e resolver todos os enigmas à tempo de pegar uma sessão de cinema às nove da noite. A adaptação de Fincher é tão, hum, respeitosa que preserva uma sensação que, para mim, se tornou incômoda: a de que o enredo “pulp” se deixa inflar por uma quantidade exagerada de assuntos, personagens e intenções, resolvendo o imbróglio sem muita perspicácia ou paciência. Digamos que seja um defeito de fabricação — do tipo que, num projeto desta natureza, um cineasta prático como Fincher não tem autorização nem ânimo para consertar.

(The Girl with the Dragon Tattoo, EUA, 2011). De David Fincher. Com Rooney Mara, Daniel Craig e Christopher Plummer. 158min. B

♪ | Always | Xiu Xiu

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Depois de perambular por selos relativamente conhecidos (Kill Rock Stars) e muito modestos (Free Porcupine, 5 Rue Christine), Jamie Stewart parece ter encontrado na Polyvinyl Records, de Illinois, um recanto muito confortável para seu Xiu Xiu. É boa a coincidência: o nono disco da banda, Always, chega na mesma temporada em que a gravadora divulga o novo lançamento de um dos grupos principais do casting: não são poucas (nem banais) as semelhanças entre as ambições de Stewart e as de Kevin Barnes, do Of Montreal.

Always pode até ser tratado como um disco-irmão de Paralytic stalks, o mais recente do Of Montreal, já que Stewart também opera uma série de colisões brutais entre versos irados, muito pessoais (sobre tabus como aborto, incesto e abuso sexual), e uma embalagem sonora de mil cores fluorescentes, combinando tons de glam rock e prog pop. Uma faixa típica do Xiu Xiu (e é preciso um grande esforço de simplificação para enquadrar o som da banda) poderia ser descrita como um encontro entre a interpretação agoniada de Antony Hegarty, a energia de um hit do Placebo e trilhas de videogame.

A diferença entre as duas bandas é que, enquanto o Of Montreal hoje experimenta com vocais (cada vez mais rascantes) e com a duração das músicas (longas e cheias de variações internas), o Xiu Xiu tenta concentrar as forças da banda (agora um quinteto) dentro de canções curtas e, até certo ponto, de fácil acesso — Joey’s Song, apesar de todo o melodrama, é uma das faixas mais agradáveis que eles já gravaram. O choque sem-luvas entre sensibilidades, procedimento comum na obra de Stwart, muitas vezes acontece não dentro das músicas, mas na fricção entre uma faixa agressiva como I Love Abortion (um estrondo que, mesmo contra a nossa vontade, nos obriga a prestar atenção ao disco) e uma balada dócil, bowiana (fase Hunky Dory) como The Oldness.

É uma banda ainda imprevisível e fora de controle, felizmente (ainda que a segunda metade do disco seja menos arriscada que a primeira). Mas algo mudou: talvez porque, lançando discos por um selo onde a estranheza conta como um valor positivo, o Xiu Xiu agora se preocupe tanto em escandalizar quanto em se fazer ouvir e entender pelo público de um, por exemplo, o Of Montreal. De certa forma, Always é a ideia louca que eles fazem de um álbum pop.

Nono disco do Xiu Xiu. 12 faixas, com produção de Greg Saunier. Lançamento Polyvinyl Records. B