Dia: janeiro 23, 2012
♪ | Tramp | Sharon Van Etten
Se você quiser, Tramp pode ser um disco muito simples.
Ele conta a seguinte história: num período de 14 meses, Sharon Van Etten viveu em Nova York sem residência fixa. Era obrigada, a todo momento, a fazer malas e se mudar para a casa de um ou outro conhecido. O alento da compositora era estúdio caseiro de Aaron Dessner, guitarrista do The National, onde ela gravou algumas canções — lá, se sentiu em casa. Às vezes, amigos como Matt Barrick (Walkmen), Zach Condon (Beirut) e Julianna Barwick acabavam aparecendo.
Nada extraordinário nisso. Músicos gravam. Músicos têm amigos. Músicos, principalmente os independentes, às vezes não têm onde morar.
Mas o contexto do disco, que está muito bem resumido neste texto de divulgação da gravadora Jagjaguwar, não me parece desimportante: o álbum pode ganhar uma série de conotações quando descobrimos que foi gravado nos raros momentos estáveis de um período que, para Sharon, foi de total instabilidade.
Ainda que essa história-de-bastidor não esclareça muitos dos mistérios das canções (e são daquelas músicas que se tornam mais profundas a cada audição), ela talvez explique por que consegue soar, ao mesmo tempo, convidativo e extremamente tenso. A gravação, dirigida por Dessner, é controlada, tranquila; mas as canções estão sempre explodindo em aflição.
Sem querer interpretar o disco além da medida (mas já superinterpretando, me perdoem): desconfio que, para Sharon, o estúdio de Dessner tenha funcionado como um espaço neutro, seguro, para a contemplação das próprias incertezas — um lugar onde ela organizava as impressões do dia-a-dia, como quem revisa os textos de um diário, pouco antes de dormir. Tramp medita sobre o ritmo de uma vida em fluxo, mas não soa simplesmente desamarrado. É, ao contrário, um disco muito forte de afirmação, sobre procurar um lugar no mundo, sobre mudar e crescer.
Esse processo pode ser especialmente complicado, perceba, se você é uma compositora que tenta se fazer notar em meio a uma multidão de cantoras hipersensíveis e supervalentes. Sharon sai perdendo por não ter nenhum truque extravagante à mão (e, perto de Zola Jesus, ela é a mais conservadora das songwriters), e escrever canções que poderiam ser facilmente creditadas ao repertório de uma Feist (nos momentos de maior aspereza, principalmente do disco mais recente). É por isso que Tramp também pode ser um álbum muito difícil: é preciso alguma paciência para notar o que há de particular no temperamento e na arte de Sharon.
E é quando se consegue essa aproximação que o efeito do disco se torna irresistível. Música a música, com um kit de lentes mais generoso do que os equipamentos usados nos dois discos anteriores, é como se Sharon estivesse criando curtas-metragens para representar determinadas situações/sensações — sequências densas, sem muitos encantos imediatos, que vão se abrindo aos nossos ouvidos a cada reprise. Não há minuto perdido, e poucas são as cenas que se repetem. É até emocionante como ela salta de uma canção mais irritadiça (Serpents) para uma balada escrita quase como uma canção de ninar, com sílabas alongadas e coro angelical (Kevin’s). Neste álbum, está claro que ela teve direito ao corte final.
Pelo menos duas canções me parecem eternas, e já estão muito bem acomodadas na minha lista de melhores do ano: a primeira, Give Out, transforma as impressões de êxodo, que a cantora conhece bem, numa love song das mais tocantes (No refrão, ela canta: “você é a razão por que eu vou mudar de cidade/ou por que não vou partir”); a outra, I’m Wrong, começa com uma linha árida de guitarra, que vai ganhando ecos e os efeitos de um jingle natalino .“É ruim acreditar em todas as canções que você canta”, ela repete, e repete, até se deixar soterrar pelo torvelinho de melodia.
E é nesses momentos que, se você quiser, Tramp pode ser o disco mais bonito do mundo.
Terceiro disco de Sharon Van Etten. 12 faixas, com produção de Aaron Dessner. Lançamento Jagjaguwar Records. A
cine | Precisamos falar sobre Kevin
Imagino que, com os temas que aparecem nesta adaptação do livro de Lionel Shriver, seria possível pautar uma edição especial de um programa de tevê à la Oprah Winfrey. O título não é desonesto: o filme trata de assuntos importantes, urgentes, e sobre eles precisamos falar. Exemplo: o que fazer quando o seu filho não gosta de você? Ou: como lidar com as consequências da violência juvenil? Mais: até que ponto os pais são responsáveis pelos erros dos filhos? E: existiria algo inato no comportamento de crianças más?
Uau. Eu passaria uma tarde inteira conversando sobre cada um desses tópicos. Mas não sei se seria muito palpitante falar sobre o filme em si. Certamente, nesse caso, uma das questões em discussão seria, ahn, a forma como a diretora Lynne Ramsay cria uma narrativa entrecortada, que se deixa influenciar pelo estado mental confuso da personagem principal. Ou conversaríamos sobre o detalhismo da cineasta, que presta atenção aos detalhes das cenas (são muitos os closes, e eles provocam certa aflição), ao uso de cores (vermelho sobre vermelho, em repeat) e à composição ultradelicada da trilha sonora (que vai nos asfixiando sem que percebamos). São efeitos que compõem um drama potente — pelo menos nos primeiros 10 minutos de projeção.
Depois, lá pelo 15º minutos de filme, quando a trama vai se tornando clara ao público, notamos que os argumentos de Ramsay são fáceis demais. E argumentos simplórios, ainda que úteis a especiais de tevê, invalidam debates sérios sobre qualquer assunto. O defeito do filme, a meu ver, está na composição do personagem de Kevin — um menino-problema diabólico, sem nenhum traço de bondade. A atuação de Tilda Swinton é admirável — e talvez, por isso, estamos sempre torcendo por ela. A personagem que ela interpreta, a mãe atazanada pelo filho indesejado, carrega toda a culpa do mundo. Mas o filme não deixa margem para que duvidemos do caráter do garoto. Numa das cenas, ele joga videogame com a fúria de quem pisoteia um gatinho.
Sob a tutela de um Aronofsky, esse conflito entre mãe assustada e filho psicopata talvez rendesse um filme menos sisudo, mais kitsch e vibrante (resumindo: um Cisne Negro). Em Precisamos Falar sobre Kevin, o tom é sempre o de uma palestra relevante, um artigo solene para acompanhar as breaking news: uma diretora competente usa uma série de recursos audiovisuais interessantes à serviço de personagens aplainados, planejados em excesso, que podem ser catalogados e, por isso, convertidos em temas para consumo rápido (em jornais/revistas semanais?). Não há mistério que resista a tanta simplificação.
(E notem que escrevi o post inteiro sem fazer referência a Elefante — me parabenizem na saída, ok?).
(We Need to Talk About Kevin, Reino Unido/EUA, 2011) De Lynne Ramsay. Com Tlda Swinton, John C. Reilly e Ezra Miller. 112min. C