Dia: janeiro 9, 2012
cine | Cavalo de Guerra
Na cena de Munique que mais me incomoda, um soldado israelense se encontra com o inimigo — um combatente árabe — num prédio em ruínas. O clima entre eles é de trégua: naquele momento, naquele lugar, no maravilhoso mundo das licenças poéticas (resumindo: no cinema de Spielberg), judeus e muçulmanos têm a chance de conviver em paz. Let’s Stay Together, de Al Green, é a música que vai na trilha sonora.
A sequência toda deve durar três, quatro minutos dentro de um filme de três horas de duração — mas ela resume muitos dos problemas que vejo no diretor: o jeito como infantiliza questões complicadas, recorrendo a encenações redundantes, fáceis, for dummies. Não basta filmar um encontro lírico entre um israelense e um árabe: a cena virá sublinhada com Let’s Stay Together (de preferência, com uma fotografia que dê preferência ao contraluz).
Acho que por isso acredito Spielberg se movimenta com mais naturalidade em filmes infantojuvenis. É o caso de Cavalo de Guerra, um conto de guerra para crianças que pode ser “lido” como um daqueles livrinhos coloridos cujas ilustrações reiteram o conteúdo dos parágrafos. É longo (duas horas e meia), inflado (como se espera de um filme do diretor). E, ao pé da letra, espetacular: há pelo menos três cenas em que um grupo numeroso de figurantes faz plateia para uma ação que envolve o cavalo-herói (numa delas, o animal aprende a trabalhar no campo; em outra, o bicho é leiloado etc).
Lembro de uma entrevista do Sam Mendes em que o diretor de Beleza Americana falava sobre um conselho que recebeu de Spielberg: faça de cada uma das cenas a melhor do filme.
Em Cavalo de Guerra, Spielberg está apenas seguindo o próprio conselho: “engrandece” cada cena, até as menores (uma conversa de família, no quintal da fazenda, é filmada sob um céu azul-berrante), nivelando a narrativa numa escala de grandiosidade que, admito, me cansa. As cenas são todas muito bonitas e bem fotografadas — como acontecia na primeira metade de Indiana Jones e o Reino da Caveira de Cristal, o diretor acena o tempo inteiro para um cinema narrativo de brechó, cuidadosamente antiquado —, ainda que o acúmulo desses momentos-Oscar, acompanhados de uma trilha incessante de John Williams, prenda a trama pelo pescoço, sufocando-a.
De qualquer forma, Spielberg está em casa, sempre muito confortável dentro de um rancho spielberguiano: quando a cor é de conto de fadas, as fantasias adolescentes do diretor parecem até fazer sentido; compro todas sem muitos problemas. A cena que mostra um bate-papo entre um soldado inglês e um combatente alemão, ambos comovidos pelo sofrimento do cavalo mágico —não me irrita tanto quanto a sequência-irmã de Munique (porque, aqui, é a fantasia que se impõe). E, se o plano final já rende muitas comparações a John Ford (e me desculpem, mas acho de uma obviedade sofrível, ainda que linda toda-vida), o tom de fábula otimista, sinceramente bem intencionada, me lembra alguma coisa de Capra.
É, baixem a guarda!, um Especial de Natal da Sessão da Tarde — e que vai ficar ainda mais adorável quando acompanhado de uma dublagem bem cafona.
(War Horse, 2011) De Steven Spielberg. Com Jeremy Irvine, Emily Watson e David Thewlis. 146min. B
cine | Triângulo amoroso
Você ainda vai ler que, neste filme, o diretor de Corra, Lola, Corra trata corajosamente de temas como: bissexualidade, traição, câncer e (como o título em português deixa muito claro) triângulos amorosos. O que talvez você não leia é que Tom Tykwer, o cineasta em ação, enfrenta todos esses assuntos “difíceis” pelo caminho mais fácil: criando uma série golpes-de-acaso extraordinários para engrenar a “dança” dos personagens. O diretor não abandonou a fixação por truques visuais que tornam a narrativa mais ágil, mas se tornam esquecíveis ao fim da sessão. São muitos os momentos, por exemplo, em que a tela é quebrada em várias microquadros simultâneos — e o recurso, quando não nos deixa com saudades do Mike Figgis de Timecode, só serve para garantir que não desviaremos nossa atenção para, digamos, o copo de refrigerante. O plano final pode ser lido como uma brincadeira engraçadinha com alguns dos temas do filme (ciência/acaso) — ou como uma metáfora para um cinema que manipula as vidas dos personagens como quem combina elementos químicos numa experiência de laboratório. Competiu no Festival de Veneza de 2010.
(3, 2010) De Tom Tykwer. Com Sophie Rois, Sebastian Schipper e Devid Striesow. 119min. C
[dennis lehane]
Ela foi julgada por roubo e condenada. Perdeu a casa. Perdeu também o marido, que se mandou enquanto ela cumpria a pena de prisão domiciliar. Sua filha foi expulsa da escola particular em que estudava. Seu filho foi forçado a abandonar a faculdade. De acordo com as últimas notícias que eu tivera, Peri Pyper estava trabalhando como telefonista em uma concessionária de carros usados de Lewiston, e à noite fazia faxina em uma loja da rede atacadista BJ’s Wholesale na localidade próxima de Auburn.
Ela pensou que eu fosse seu companheiro de bar, seu flerte inofensivo, sua alma gêmea política. Ao ser algemada, encarou-me e viu minha traição. Seus olhos se arregalaram. Sua boca formou um O perfeito.
– Patrick, nossa – ela disse logo antes de ser levada embora. – Você parecia tão real.
Tenho quase certeza de que foi o pior elogio que já recebi.
(Trecho de Estrada Escura, de Dennis Lehane)