Dia: janeiro 2, 2012
cine | Missão: impossível – Protocolo fantasma
Dirigir um filme da franquia Missão: Impossível deve ser um trabalho tão delicado quanto o de produzir um disco da Madonna. Vejamos: nos dois casos, os proprietários das obras (Tom Cruise e Madonna, respectivamente) saem à procura de produtores/cineastas respeitados, que estejam em alta no showbusiness e acrescentem algum valor midiático e (às vezes) artístico aos discos/filmes. Cruise e Madonna vão garantir liberdade a esses “autores convidados”, mas não sem estabelecer algumas cláusulas restritivas no contrato. Estamos falando sobre uma negociação: a cantora quer os hits e o ator, as cenas espetaculares de ação.
É uma comparação forçada, mas que simplifica o ponto onde quero chegar: as obstruções impostas por Cruise/Madonna, de uma forma ou de outra, acabam por ressaltar as particularidades dos cineastas/produtores que ele/ela contrata – já que cada diretor/produtor terá que fazer o mesmíssimo filme/disco de uma forma que, supostamente, só ele sabe.
No longa de Abrams, os obstáculos mostraram a expertise televisiva de um diretor que se aproxima dos atores aos esbarrões, com a câmera sempre trêmula e em close, e que prefere cenas de ação brutas, amareladas, com dezenas de referências a seriados de sucesso (de Alias a 24 Horas) etc. É, em minha modestíssima opinião, o pior momento da franquia.
Ainda comparando os dois mundos: Brian de Palma e John Woo fizeram filmes que equivalem a discos como Confessions on a Dance Floor e Ray of Light, em que os produtores conseguem não só aparecer na música como domar o processo de produção e moldar a estrutura dos álbuns. Já J.J. Abrams e Brad Bird fizeram um Hard Candy – filmes que oxigenam o regulamento de Cruise, mas sem pressioná-lo demais. Superproduções eficientes, que cumprem direitinho aquilo que o patrão mandou.
Não que os diretores pareçam se incomodar com isso. Tanto Abrams quanto Bird estão acostumados a lidar com limitações – o primeiro, muito bem acomodado no esquema industrial da tevê americana; o segundo, acolhido alegremente pela Pixar (que, como Madonna e Cruise, também garante certa liberdade aos seus autores). Brad Bird, que só havia dirigido fitas de animação até aqui, joga sempre junto com Cruise – mas, como não poderia deixar de acontecer (tá no contrato!), também aparece na tela. E de uma forma muito coerente com o que fez em desenhos como Ratatouille e Os Incríveis.
O que noto de Bird em Missão Impossível 4 é, principalmente, o cuidado com o desenho das cenas. E isso fica ainda mais aparente nas sequências de ação, que parecem ter sido concebidas para fitas de animação: o diretor trata esses trechos com um rigor e um senso de encantamento que parece mesmo raro no gênero (e comparar com a ação grosseirona do filme anterior pode provocar um contraste gritante). Uma das cenas, em que Cruise se pendura num arranha-céu espelhado de Dubai (o desfecho cômico é, aliás, uma belíssima sacada), me deixou tão deslumbrado que demorei alguns minutos para voltar ao fio de uma trama – que, como de costume, envolve conspirações e reviravoltas em mais de três territórios à sua escolha.
Quando não está vendendo laptops da Apple ou compondo panfletos turísticos de Dubai, o que Bird faz é um action movie vazio (e bonito) que poderia atender por Um Homem em Perigo. No episódio anterior, Ethan Hunt ainda parecia humano, um sujeito que encontraríamos na rua. Aqui, ele é um alvo em movimento: forte, invencível, um super-herói desviando de tiros e levando sopapos; quase um tipo cômico, uma entidade de cartoon, uma criatura de cinema.
Se o filme fosse só isso – uma longa cena de ação dirigida por Bird -, seria ótimo. O que me mata são os noventa e tantos minutos que sobram entre uma pirueta e outra. No linguajar da música pop, tem muito filler, muito intervalo comercial. Canções espetaculares de três minutos num álbum errático – mais ou menos como Hard Candy, ou qualquer outro disco esquecível (mas cheio de hits) da Madonna.
(Mission: Impossible – Ghost Protocol, EUA, 2011) De Brad Bird. Com Tom Cruise, Jeremy Renner, Simon Pegg e Paula Patton. 133min. B
cine | A guerra está declarada
No festival Paris Cinéma, o segundo longa dirigido pela atriz Valérie Donzelli ganhou os prêmios de melhor filme segundo (atenção) os blogueiros. O que não deixa de ser uma coincidência curiosa – já que, de certa forma, isto é um filme-blog. Donzelli e o ator Jérémie Elkaïm, que escrevem o roteiro e interpretam os papéis principais, encenam o longo drama hospitalar que eles viveram após terem descoberto que o filho pequeno tinha um tumor no cérebro. Muitas das sequências, aliás, têm a aparência de gifs animados que encontraríamos num tumblr transado: elas piscam em firulas mil – há uma cena musical superfofa e várias referências visuais ao que jovens cineastas franceses, vide Christophe Honoré, entendem por nouvelle vague; em resumo: o Godard alegre e jovial de Uma mulher é uma mulher. Donzelli tenta criar ilhotas de graciosidade e leveza em meio à tragédia; mas existe um desequilíbrio, que pode se tornar muito incômodo, entre a franqueza desses “posts” (uma qualidade que os blogueiros do Paris Cinéma souberam valorizar) e os maneirismos da narrativa, quase sempre excessivos. O filme, que abriu a Semana da Crítica no Festival de Cannes, é o representante da França no Oscar 2012.
(La Guerra est Déclarée, França, 2011) De Valérie Donzelli. Com Valérie Donzelli, Jérémie Elkaim e César Desseix. 100min. C