Dia: dezembro 29, 2011

cine | Compramos um zoológico

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Alguns meses depois da morte da esposa, Benjamin Mee resolveu mudar de rotina: o americano abandonou a carreira de repórter e comprou um zoológico, onde passou a viver com os dois filhos. O lar da bicharada de forma foi reativado de forma tão admirável que o pai viúvo se tornou um herói local. Quando perguntavam a ele sobre a razão de ter se metido num ramo profissional tão exótico, o homem respondia sempre do mesmo jeito: “Por que não?”.

Talvez as pessoas tenham feito essa pergunta tantas vezes que Benjamin decidiu escrever um livro sobre a experiência. A autobiografia inspira este Compramos um Zoológico.

Admiro a bravura do jornalista. Mas desconfio que o livro me irritaria. Se o filme de Cameron Crowe foi minimamente fiel às intenções de Benjamin, aquelas páginas podem ser usadas como slides em palestras de motivação para funcionários em crise. “Seja como Benjamin: proativo, corajoso, gente que faz”.

Não sei se o livro é uma obra de autoajuda (não li, não quero ler). O filme o é. E sem culpa, sem vergonha, com uma vibe tão alegremente cafona quanto a de Comer Rezar Amar. A diferença é que Cameron Crowe sempre foi um sujeito alegremente cafona. Também sinceramente alegre, otimista e jovial – qualidades que o apartam dos muitos ghostwriters que produzem livros sobre como se tornar um bom gerente ou como agir quando alguém mexe no nosso queijo.

Reconheço com facilidade Cameron Crowe nos filmes que ele dirige. As trilhas musicais sugerem um fã quarentão de música pop tentando forçar amizade com os mais novinhos (reúne canções dos anos setenta combinadas a uma ou duas novidades elogiadas pela revista Rolling Stone), as tramas são sentimentais e afetuosas (mas nunca impessoais, já que Crowe parece ser, de verdade, um cara sentimental e afetuoso), os personagens nos lembram pessoas que conhecemos (são tipos sentimentais e afetuosos, mais ou menos como Crowe deve ser) e, nessas narrativas de bom coração, cinismo é palavra feia, vetada.

Qualquer um dos filmes de Crowe (talvez à exceção de Vanilla Sky, que era um remake) cabe nesse padrão de dramaturgia/temperamento, que Compramos um zoológico segue com muita naturalidade. Mas me pergunto se, a esta altura, e talvez por ter visto todos os longas do diretor, Crowe não estaria simplesmente procurando desculpas para fazer os filmes que sempre fez.

Talvez sim. Compramos um Zoológico é, simultaneamente, um filme-de-Crowe e um filme-autoajuda – e me impressiona como podemos dividi-lo em duas partes, que podem ser analisadas separadamente. O filme-de-Crowe se mostra gentil, sempre digno e correto; já o filme-autoajuda é chantagista e manjado, um veículo pobretão para astros que não querem se esforçar muito (Matt Damon e Scarlett Johansson). O filme-de-Crowe é o tiozinho que se emociona com Bon Iver e Neil Young, que preza (honestamente) os valores familiares e que acredita num amor ingênuo, primaveril. O filme-autoajuda, em contrapartida, é uma armação de marketing programada para nos ensinar o que já sabemos – e patrocinada pela Apple.

Acontece que, se Crowe está em Compramos um Zoológico (e são muitos os pontos de contato entre este filme e Jerry Maguire e Quase Famosos), Compramos um Zoológico mostra que a sensibilidade do diretor, quando associada a tramas aborrecidas como esta, serve de papel-de-presente fino para embrulhar objetos banais. Deixei a sessão de Compramos um Zoológico certo de que reencontrei o sujeito boa-praça de sempre; mas o homem, dessa vez, não tinha quase nada de inteligente a dizer.

(We Bought a Zoo, EUA, 2001) De Cameron Crowe. Com Matt Damon, Scarlett Johansson e Thomas Haden Church. 124min. C+

cine | Gato de Botas

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O primeiro Shrek é o melhor da série. Estou quase certo, vejam só, de que ele mereceria uma boa cotação neste blog (B+, digamos). Mas recomendo que, nesse caso, você não confie muito em mim: sempre fui uma mãe para as comédias que satirizam filmes conhecidos e, quando vi aquele desenho, eu tinha 21 anos. Em 2001, este blogueiro dizia/escrevia coisas que hoje me envergonham.

As três sequências de Shrek são bobagens bobíssimas, certo? A segunda era um pouquinho engraçada. As outras duas, nem isso. Não lembro delas, e duvido que muita gente lembre. Mas tenho vagas lembranças sobre aquele primeiro Shrek. Na época, num texto que escrevi (um post cheio de adjetivos, como quase tudo o que eu escrevia naquela época), o qualifiquei como “empolgante”, “vívido”, “alegre” etc. O que ficou na minha memória foi mais ou menos isso: uma animação rancorosa/recalcada, sim (é um fuck-off pra Disney, resumindo), porém cheia de joie de vivre; graça, entusiasmo.

É tudo o que (também resumindo) este Gato de Botas não tem. Possivelmente o filme será acolhido com carinho por críticos que rejeitam o humor despeitado de Shrek. Gato de Botas passa, nesse aspecto, à margem da franquia onde nasceu. Em parte, o faz por razões comerciais: existe toda uma impressão de desgaste associada à série. Mas a alternativa dos produtores (entre eles, Guillermo del Toro) me parece inócua: criar uma fita de aventura levemente cômica e com algo surreal (um dos personagens é um ovo falante!), com sotaque espanhol, que poderia ser descrita como, ai-ai, uma versão animada e em 3D para, sono, A Lenda do Zorro. Um cineasta mais sacana, um Robert Rodriguez, teria tratado os personagens e as situações de uma forma mais apaixonada. Mas Guillermo del Toro não é Robert Rodriguez. E Robert Rodriguez não está aqui.

(Puss in Boots, EUA, 2011) De Chris Miller. Com vozes de Antonio Banderas, Salma Hayek e Zach Galifianakis. 90min. C

[michel laub]

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1.
O diagnóstico do Alzheimer é feito em várias etapas. Primeiro é uma consulta simples, o médico pergunta sobre os lapsos de memória do paciente, se ele fuma e bebe, se toma remédios, se teve alguma doença grave e fez algum tratamento ou cirurgia nos últimos anos. O médico ouve os batimentos cardíacos, mede a pressão, pede exames clínicos de orientação e linguagem, e em seguida uma tomografia, e também uma ressonância magnética, e também uma dosagem de hormônios da tireoide, e também de cálcio e fósforo e vitamina B, e também recomenda o PET Scan e o SPECT, uma série de procedimentos para excluir outras causas para os lapsos, como o estresse, a demência, a arteriosclerose, a depressão e o tumor.

24.
Primeiro o meu pai deixou o assunto o mais próximo possível de uma rotina doméstica, e tenho até a impressão de que ele se empenhou para que a minha mãe continuasse lidando com isso como se nada houvesse acontecido, um esforço para continuar reproduzindo diante dela as manias costumeiras, e cada vez que eu telefonava ela dizia que ele continuava do mesmo jeito, os resmungos, a louça e as calças, o programa de rádio de manhã. Era como se ela e eu nos convencêssemos de que meu pai ainda era o mesmo, uma espécie de licença renovada a cada telefonema. Passou a ser comum ele repetir a pergunta que fez dois minutos antes, e dar dinheiro em excesso à faxineira ou ao porteiro, e mudar de humor no meio de uma conversa, mas parecia ainda estar longe a tarde de inverno em que ele surpreenderia a minha mãe, um gesto nunca antes visto, uma palavra que em quarenta anos de casamento ela nunca tinha ouvido da boca dele, uma novidade que anuncia uma sequência ainda mais acelerada de mudanças, meu pai perdendo um pouco do que qualquer um de nós reconheceria como algo único dele, e uma manhã ele acorda sem saber o nome de uma cidade, e na outra se um animal voa ou nada ou se arrasta, e numa terceira a marca do próprio carro e como se usa o acelerador e o freio, e de repente ele não sabe há quantos anos está casado com a minha mãe, e nessa tarde de inverno tomando chá e distraída com o relógio de parede que marca cinco horas ela percebe que ele não faz ideia de quem é e do que está fazendo ali.

[trechos do livro Diário da Queda, de Michel Laub]