Dia: dezembro 15, 2011
♪ | Undun | The Roots
Undun, meu pai diria, é um álbum conceitual: como numa narrativa cinematográfica, essas 14 faixas compõem uma trama. Juntas, contam a história de um homem comum, Redford Stevens, que se tornou criminoso e morreu em circunstâncias relativamente banais. No início do disco, o herói fala do além-túmulo: com distanciamento à la American Beauty (o filme de Sam Mendes, não o disco do Grateful Dead), ele contempla os momentos mais importantes de uma existência sem muitos momentos importantes.
Não é um filme muito original. Já vimos esse drama. Mas ainda não havíamos ouvido um disco como este. O mais curioso, no caso, seria descobrir como a banda conseguiu transformar em música os pensamentos e o temperamento do personagem. Porque isto é um álbum, não um audiobook.
O disco me frustra porque percebo nele um descompasso entre o tema central (ambicioso) e uma sonoridade pop apenas eficiente, até um pouco previsível, interpretada de forma correta, mas que não me oferece muitos desafios. Quem não presta atenção às letras pode ficar com a impressão de que ouve apenas mais um álbum do The Roots (um pouco mais introspectivo que os recentes, e só). Sempre defendo os discos que tentam criar um mundo para si, desenhar uma narrativa particular; mas este aqui me parece daqueles casos em que o conceito supera (e muito) a realização.
E a maior prova dessa deficiência está no desfecho do álbum, que cria uma mini-sinfonia ao redor de uma faixa do Sufjan Stevens (Redford). É como se a banda tomasse uma medida desesperada para encontrar a atmosfera melancólica que o som do restante do álbum só consegue sugerir muito sutilmente. E percebam que não estou falando especificamente nos versos – esses explicitam a todo momento o tema do disco.
O roteiro tem lá alguma complexidade (é um fluxo de consciência de 38 minutos de duração), algumas músicas soam desencantadas (ainda que agradáveis, sempre), as canções sobrevivem quando apartadas do conceito, mas sinto falta da figura de um cineasta (de um grande compositor?) capaz de transformar essa trama muito típica num filme/disco singular.
Décimo primeiro disco do The Roots. 14 faixas, com produção de Richard Nichols e The Roots. Def Jam. 62
cine | Margin call – O dia antes do fim
O título em português deste longa de estreia poderia ser algo como Saiba Como Começa uma Crise Financeira (e Morra de Raiva ao Descobrir). Mas, descontada a ambição de nos explicar didaticamente a verdadeira-verdade sobre os maus hábitos dos poderosos (e taí Oliver Stone fazendo escola na indielândia americana), este thriller corporativo é o filme que David Mamet escreveria em 2011 se já não estivesse tão cansado de escrever filmes de David Mamet.
A metralhada de diálogos cruéis e/ou cifrados – disparados por homens bem sucedidos, vestidos em figurinos caros e genéricos – me lembrou, em alguns momentos, o falatório frenético de Sucesso a Qualquer Preço. O roteiro de J.C. Chandor tem o ritmo de uma comédia de erros shakespeariana; renderia, por isso, um espetáculo teatral muito vibrante – e esse meu comentário não contém nenhuma ironia.
O elenco parece saber disso, e crava os dentes no script com a fúria de quem encena Hamlet. Que boa surpresa ver Kevin Spacey atuando (há quanto tempo isso não acontecia?). E que senhora revelação notar a sensibilidade de um diretor estreante que permite a Jeremy Irons uma interpretação ligeiramente acima do tom, muito condizente com um personagem (o Lúcifer de Wall Street) que paira sobre o filme inteiro como uma sombra medonha.
Chandor talvez admire mais David Fincher que, digamos, Stanley Kubrick. Dirige com a precisão de um técnico aplicado, de um engenheiro, mas dirige – a encenação azul-cinzenta, rasgada por alguns momentos de rápida distenção (é quase surreal a cena em que os funcionários da firma conversam sobre dinheiro no topo do prédio, aliás), está sempre comentando o cotidiano dos personagens, tão cheio de ilusões vazias. O cineasta circula atentamente no escritório.
Só que ele, o diretor, poderia estar apenas expondo uma tese, não poderia? Às vezes parece que faz exatamente isso. Mas enquanto o roteiro destrincha a tragédia de um “sistema” sem conserto, que sempre será demolido e reerguido por uma pequena elite (e taí um filme-irmão de Tropa de Elite 2), a câmera cola nos personagens, se interessa por eles. À exceção de alguns casos (o funcionário deslumbrado, por exemplo), esses tipos não são tratados apenas como vilões ou ingênuos. São isso e aquilo – e também pessoas comuns, como a última cena explica (didaticamente) muito bem.
(Margin Call, EUA, 2011) de J.C. Chandor. Com Kevin Spacey, Zachary Quinto, Stanley Tucci e Jeremy Irons. 107min. B