Dia: dezembro 9, 2011
cine | Um dia
Na contracapa do livro Um dia, lançado no Brasil pela editora Intrínseca, o leitor encontra uma série de elogios: “Inteligente, engraçado, sagaz e, por vezes, insuportavelmente triste” (The Times); “Difícil encontrar uma comédia romântica tão afiada e doce” (The Independent). Há muitos outros superlativos em tons alaranjados – e admito que, quando tentei lê-los de uma vez só, fiquei um pouco tonto.
É o que geralmente acontece com best sellers: eles querem nos convencer de que são eventos importantes, essenciais para o mundo literário. Mesmo quando, na maioria das vezes, servem apenas e simplesmente para mostrar que não devemos levar muito a sério as resenhas do The Times e do The Independent.
Li Um dia e não vejo por que mentir: é um romance divertido. Tão gracioso e sentimental quanto, digamos, os minutos finais de um episódio de Grey’s Anatomy. E movimentado como uma season finale de 24 Horas. Muita coisa acontece na trama. E, antes que eu esqueça, é um livro que me parece ruim, muito ruim.
Ruim, em primeiro lugar, porque não é escrito com muito esmero: David Nicholls, o autor, usa um tom informal e engraçadinho, adotado à rodo por pupilos de Nick Hornby – na maior parte dos casos, para ocultar falta de rigor com a prosa. Quem gosta de literatura sabe que pode ser terrível passar dias, semanas na companhia de um escritor que maltrata as palavras.
Em segundo lugar, ruim porque faz pouco caso de uma premissa instigante. O plano de Nicholls é acompanhar dois personagens durante vinte anos. Mas – eis o pulo do gato – ele pretende destacar apenas as situações que ocorreram a cada 15 de julho. Ano a ano, pois, o leitor reencontrará aquelas duas pessoas.
O desafio me parece grande, enorme. Acredito até que talvez só um bom escritor (e isso Nicholls está longe de ser) seria capaz de resolvê-lo: cada capítulo teria que ser simultaneamente muito banal (um dia, afinal e antes de tudo, é apenas um dia) e interessante o suficiente para prender a atenção de leitores que querem ler a love story bobinha da estação.
O autor, muito malandramente, usa um truque tolíssimo para facilitar esse processo: capítulo a capítulo, ele recorre a uma série de recursos manjados para situar o leitor na trajetória completa dos personagens. Flashbacks, por exemplo. Ou diálogos oportunos, do estilo: “Sabe a Emma? Pois é: nos últimos 11 meses, ela casou, teve três filhos, acampou no Havaí, mudou de emprego três vezes, ensaiou peças de teatro e aprendeu francês.” É como se Nicholls estivesse trapaceando dentro de um jogo que ele próprio inventou.
Mais estranho é quando o 15 de julho subitamente se transforma num dia onde eventos muito especiais acontecem, todos de uma vez só. Uma viagem incrível para o litoral, digamos. Sempre que eu esbarrava num desses capítulos, minha pergunta inevitável era: mas isso tudo não poderia ter acontecido no dia 17?
O filme Um dia, escrito pelo próprio Nicholls, também vai lenta e sorrateiramente ignorando esse ponto de partida e (como o livro) acaba por se transformar numa comédia romântica trivial. No decorrer do longa, cheguei a esquecer de todos os desafios da premissa: a montagem, sempre muito ágil, aplica uma fluência sem tempos mortos a uma narrativa naturalmente fragmentada, que deveria se movimentar aos solavancos (e se, no período de um ano, 90% dos personagens tivessem morrido num desastre aéreo? E se, no dia 15 de julho de 1990, a mocinha estivesse em coma? etc).
Tudo – no filme e no livro – me parece um desperdício. O projeto do romance permitia a Nicholls as aventuras mais imprevisíveis, mais loucos. Charlie Kaufman teria feito estragos. O escritor, no entanto, prefere arredondar a trama com os desencontros mais óbvios do manual de instruções de comédias românticas – no filme, a preguiça se torna aparente (já que ele todo não é difere muito de um típico veículo para Julia Roberts ou para a própria Anne Hathaway).
O filme me parece melhor que o livro porque somos poupados das gracinhas e galanteios de Nicholls (elas se limitam aos diálogos, e taí algo que o homem sabe escrever) e porque a direção de Lone Sherfig (a assepsia em nome de mulher) funciona como uma espécie de resenha para o texto original, resumindo a trama às situações essenciais (e é um resumo eficiente: ninguém precisa ler o romance se ele cair no vestibular) e apontando o defeito principal do livro.
Que é: nessas páginas, faltam personagens complexos e naturalmente cheios de vida, capazes de seduzir o leitor mesmo nos 15 de julho em que nada acontece.
(One Day, EUA/UK, 2011) De Lone Scherfig. Com Anne Hathaway, Jim Sturgess e Patricia Clarkson. 107min. C
cine | Riscado
É mesmo muito engenhoso, pra dizer o mínimo, o jogo de espelhos/camadas que este filme cria para narrar a trajetória de uma atriz (um recurso que tá muito bem explicado nesta resenha aqui). O que mais me agrada em Riscado, no entanto, é outra coisa: a afinação das atuações. Elas encontram uma sintonia muito delicada entre a aparência de improviso (em alguns trechos, parece que a câmera flagra essas pessoas sem que elas percebam) e uma certa malandragem metalinguística, que vai sabotando as expectativas do espectador. É, só por isso, um dos melhores filmes brasileiros do ano.
Na primeira meia hora, a engrenagem dessa ficção-em-espiral opera às mil maravilhas: os diálogos são tão imprevisíveis (e verossímeis) quanto as conversas que a gente ouve quando presta atenção a “cenas” do cotidiano (numa estação rodoviária, por exemplo). Pena que o desfecho trágico da trama, talvez por explicitar os truques da dramaturgia como quem esbarra em porcelanas, tenha me afastado dessa ilusão que o diretor estava criando até ali. De qualquer forma, se me pedissem para escolher o melhor elenco de um filme que vi em 2011, eu apontaria para este aqui.
(Brasil, 2010) De Gustavo Pizzi. Com Karine Teles, Gisele Fróes, Lucas Gouvêa e Otávio Muller. 85min. B