A segunda música de Metals abre com uma imagem que funciona como uma espécie de epígrafe para o terceiro disco de Leslie Feist: um cemitério cheio de luz.
Estamos diante de uma marcha fúnebre, portanto. Mas de um tipo enganoso: sob a terra da mixagem, a melodia vai estalando os ossos até renascer gloriosamente, num coro de mortos-vivos: “Traga todos de volta à vida”, eles cantam. O disco, de alguma forma, está todo dentro desse verso e da atmosfera árida/amarelada dessa canção.
Li muitas resenhas sobre o álbum (há duas semanas, não consigo me livrar dele), e a que me pareceu mais completa foi a da Uncut, uma revista inglesa com um fraco pelo dark side of the folk (infelizmente não tenho o link para compartilhar a belezinha): o autor do texto, Bud Scoppa, percebe que a sensibilidade de Feist se assemelha à de uma pintora: ela escolhe locações muito específicas para gravar os discos, e tenta “colorir” as canções com os tons da paisagem.
Metals seria, se seguirmos essa linha de pensamento, um álbum que simula a natureza exuberante – entre florestas e formações rochosas – de Big Sur, na costa californiana. É claro que não trata apenas disso, mas a sensação de que todas as faixas apontam para uma mesma paragem talvez venha daí: o disco alterna, às vezes dentro de uma mesma canção, a textura de um pedregulho com a variedade de matizes que se encontra numa reserva florestal. A bateria opaca pode aparecer sozinha, desnutrida, ou acompanhada por arranjos de orquestras, por uma linha de guitarra de blues, sopros de fita de horror, violões dedilhados etc.
A velocidade com que o disco foi gravado – duas semanas e meia, numa fazenda convertida em estúdio – talvez ajude a explicar essa concisão sonora. Seria injusto, porém, ignorar a participação do coprodutor Valgeir Sigurosson. O homem, que ainda é lembrado pelo trabalho com Björk, reprisa aqui o contraste que operou em The letting go, de Bonnie “Prince” Billy: opõe clima gélido, com truques de estúdio tão nórdicos, a canções quase domésticas e tão pessoais, tão americanas. O efeito amplia de tal forma o script de Feist que é como se assistíssemos a uma fita indie, chamber drama (uma mulher dentro de um quarto), em 3D, numa sala IMAX.
E, ainda que nas entrelinhas, esta é a superprodução de Feist. Apesar da presença dos colegas Chilly Gonzalez e Dominic “Mocky” Salole, a canadense convidou o tecladista Brian LeBurton (Beck) e Valgeir para gravar um disco com a noção de espaço que faltam a The reminder (2007) e Let it die (2004). Uma reclamação justa, contudo: aqui, não dá nem para procurar singles tão poderosos quanto os do disco anterior (nada de 1234 ou de Limit to your love). Metals, no entanto, não é nem quer ser um disco de singles.
É, digamos, um ciclo discreto de canções – à moda de Van Dyke Parks e Joanna Newsom, ainda que sem a consistência ou as idiossincrasias que talvez Feist procurasse. Às vezes soa como um disco da Norah Jones, como nas baladas Cicadas and gulls e Bittersweet melodies. Às vezes soa como Arcade Fire e Broken Social Scene, como no sing-a-long de Comfort me e A commotion. Às vezes soa como o disco que apenas Feist poderia ter gravado (Anti-pioneer, Caught a long wind), mas não é sempre que acontece.
O que mais me agrada em Metals, além do esforço de criar um halo sonoro em torno das canções, é como as ranhuras das melodias estão sempre ressaltando o tom de tensão e tristeza dos versos de Feist, numa toada muito semelhante à de St. Vincent e de Fiona Apple (é claro, praticando muitos dos clichês que marcam as singer-songwriters da geração de Aimee Mann). Quando se tenta decifrar as letras (o que, no caso, exige esforço), encontramos um songbook de desilusão. O disco começa com uma fábula sobre um homem bom e uma boa mulher que não conseguem encontrar bondade um no outro. Na faixa seguinte, já fomos lançados em pleno cemitério.
Não se trata, no entanto, de um álbum totalmente dark, já que Feist está sempre pronta para refrescar os versos com melodias agradáveis, que poderiam estar num disco da Adéle. How come you never go there, por exemplo, é um single para um entardecer californiano. Mas, no versos, a brisa bate com secura. “Por que você nunca vai até lá? Por que fico sempre sozinha lá?”, Feist pergunta. Sem resposta.
Ou, num apelo mais direto, em Comfort me, ela admite: “Quando você me conforta. Na verdade, isso não me dá conforto algum.” E aí o disco começa a parecer mais complicado, mais cheio de drama (e de luz) do que soava quando o encontramos pela primeira vez.
Terceiro disco de Feist. 12 faixas, com produção de Feist e de Valgeir Sigurosson. Lançamento Universal. 76
“Levar seus livros de uma vida para outra não era novidade para Zuckerman. Em 1949, ele saíra da casa dos pais e se mudara para Chicago levando na mala as obras anotadas de Thomas Wolfe e o Roget’s Thesaurus. Quatro anos mais tarde, contando então vinte anos, deixara Chicago com as cinco caixas de papelão em que acondicionara os clássicos adquiridos a duras penas em sebos, e as levara para o sótão da casa de seus pais, onde ficaram durante os dois anos em que serviu o Exército. Em 1960, quando se separou de Betsy, foram necessárias trinta caixas para transportar os livros retirados de estantes que não lhe pertenciam mais; em 1965, ao se separar de Virginia, as caixas chegavam a quase sessenta; em 1969, mudou-se da Bank Street com oitenta e uma caixas de livros. Para abrigá-los, novas estantes de três metros e meio de altura haviam sido instaladas, de acordo com suas instruções, em três paredes do novo escritório; mas, embora já houvessem se passado dois meses e os livros geralmente fossem os primeiros a encontrar o devido lugar quando ele se mudava de um local para outro, dessa vez eles permaneciam nas caixas. Meio milhão de páginas abandonadas, intocadas. O único livro que parecia existir era o seu. E, sempre que ele tentava esquecê-lo, alguém se encarregava de refrescar sua memória.”