Dia: setembro 16, 2011

A creature I don’t know | Laura Marling

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Quando ouço Laura Marling, lembro imediatamente das meninas que sentavam nas primeiras fileiras da classe, tão perto dos professores e do quadro-negro (e tão longe dos alunos mais bagunceiros: aqueles que, nos casos mais trágicos, seriam reprovados).

E essas lembranças são de um tempo que eu tinha 10, 11 anos de idade. Era um moleque. Laura canta às vezes como uma senhora de 52 anos (a inglesa tem 21), mas sempre que ela começa eu acabo voltando àquelas meninas. E aí penso na dedicação que demonstravam naturalmente, todos os dias. Dedicação como que infinita. É uma lembrança inevitável.

Eu admirava essas meninas (mas não as amava, e nem havia como, porque elas eram como estátuas de bronze em exposição; e, no mais, não tinham tempo para ficar amando à toa). Sempre tão atentas, prematuras, pareciam ter nascido com todas as respostas. Estavam verdadeiramente, e há muitos-muitos anos, à frente dos outros, os menos aplicados (eu, por exemplo, era um aluno nota 7).

Elas tiravam nota máxima nas provas e, como se não bastasse, respondiam as questões com a mais arredondada das caligrafias. Preenchiam cada lacuna com uma cor (do rosa ao preto) de forma que o exame alegrassem os olhos dos mestres. E outros agrados que, de tão bem bolados, provocava na classe um tipo de inveja muda, reprimida (de tão forte), que nem percebíamos sentir. Na maioria do tempo, fazíamos de conta que elas não existiam, essas meninas nota 10.

E algumas permaneciam para sempre invisíveis. Visíveis para os professores, mas não para os alunos (que tinham mais o que fazer).

Davam a impressão, elas, de que não estavam nunca, jamais para joguinhos tolos, para brincadeiras: quando o professor pedia o trabalho para ser feito em casa, criavam capas em plástico vermelho, com adesivos. Quando tinham que apresentar palestras para a turma, exibiam trechos de filmes legendados. E traziam cartolinas, usavam roupas típicas (quando o tema era, digamos, cultura italiana).

Não sei o que elas fazem hoje, essas meninas (aposto que se tornaram médicas ou advogadas ou talvez dentistas, mas é impossível cravar; talvez tenham perdido tudo, até a inteligência, não dá para saber). Na época, me pareciam irreais, seres em holograma (ou, pensando hoje, ilusões de um tempo em que eu inventava coisas demais). Talvez tenham se transformado em cantoras extremamente eficientes e detalhistas. Será? Deve ser por isso que penso nelas quando ouço Laura Marling.

E talvez por isso eu consiga admirar a música de Laura Marling – sem conseguir amá-la, no entanto. As meninas nota 10 me ensinaram algo sobre empenho, sobre dedicação, mas quando penso nas garotas que eu amava naquele tempo… Nenhuma delas era perfeita. Na verdade, todas eram até muito erradas, cheias de defeitos que me deixavam caído, fraco.

Já no terceiro disco da carreira, Laura (e nem sei se posso chamá-la apenas assim; essa mulher me intimida) me parece conquistar tudo o que perseguia. Absolutamente tudo. É um disco accomplished, como se diz. A cantora/compositora escolhe uma quantidade não muito exagerada de cores (uma aquarela conservadora, mas estamos falando de uma artista à procura de simetria, de uma beleza clássica), desenha um mundo, o habita, e nos transporta para lá.

É um CD de estatura média (tem 10 faixas), conciso, que demarca uma trajetória cristalina (ele começa convidativo, vai se tornando tenso e feroz, encontra um ponto de ebulição, e depois vai relaxando os músculos até encontrar um certo tipo de happy end). Os versos são tão harmônicos que deixam a sensação de que foram escritos num período de dez anos, uma palavra por dia. Não foram, o que as torna ainda mais espantosas.

Ao contrário de uma St. Vincent, de uma Fiona Apple, Laura parece ter nascido sem paciência para qualquer um dos clichês das mulheronas-superpoderosas, e por isso vai pegar indicações nas fabulações de uma Joan Baez, de uma Joanna Newsom, de um Robert Plant, narrando casos, criando personagens, indo e voltando a temas recorrentes (relações familiares, arrependimentos, culpa, as criaturas estranhas da intimidade e da idade adulta) para se afirmar dentro de um sistema de referências/sonoridades que não é muito particular, mas de que ela se apropria música a música, como quem customiza um sofá antigo.

Ao contrário de St. Vincent, que tenta criar uma espécie de assinatura sonora, Laura prefere decorar o próprio quarto (ou, digamos, o próprio repertório) com uma série de objetos vintage, organizando-os de tal forma a compor um arranjo delicado, agradável, “sofisticado”, que não nos parece bagunçado ou dissonante nem nos momentos supostamente enfezados do disco (em The beast, por exemplo, quando as guitarras tentam fazer chover pedra na cidadezinha aprazível da cantora).

É por excesso de zelo, por causa um perfeccionismo ideia-fixa, que Laura às vezes tangencia a assepsia técnica – como em I was just a card, que parece implorar por uma versão by Dave Matthews Band. Mesmo nesses momentos, a voz da cantora se impõe com tanta segurança que cobra nossa atenção. A insegurança nunca se mostra na música, ainda que às vezes apareça nas letras. “Pode não ser o certo, mas é real”, ela canta.

Sim, soa real. Mas também soa sempre muito certo. Corretíssimo. Ou (sei que é uma crueldade dizer isso; pobres das meninas dedicadas, elas não merecem tanta relativização) certo em demasia, como se Laura tentasse criar uma arte totalmente sob controle, uma fera domesticada, um animal de dentes pontiagudos, mas que nunca ameaça a saúde do tratador. A creature I don’t know me parece um disco que se adequa a certos limites riscados por sua “dona” – e que, por isso, nunca dá chance para o erro (muito menos para o acaso, mas aí estaríamos cobrando outro disco, de outra cantora).

Com este álbum, Laura chega ao ápice da carreira, e não duvido disso. Talvez muito cedo. É o disco perfeito que ela procurava; um álbum inatacável, a menos que você cobre dele aquilo que ele próprio não pretende oferecer. Como acontecia com as meninas nota 10 lá do colégio, Laura acerta todas as questões – e faz as palestras mais complicadas sem desarrumar o penteado.

Não dá para dizer que este disco me aborreça. Não. Nem me mata de tédio. Há momentos até que me emocionam (Night after night, e o trecho de Salinas em que ela se teletransporta para a fase 68 de Bob Dylan). Mas, acima de tudo, ele me deixa curioso em relação às próximas criações de Laura. Existe arte após a perfeição?, eis a questão. No mais, o que acontece com as alunas dedicadas do primário quando entram na faculdade?

Desconfio que, aí sim, vamos conhecer uma história fascinante: uma criatura talvez irreconhecível.

Terceiro disco de Laura Marling. 10 faixas, com produção de Ethan Johns. Lançamento Virgin Records. 72