Dia: setembro 7, 2011

Strange mercy | St. Vincent

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O disco anterior de St. Vincent, Actor (2009), soava como uma versão às vezes sinistra (imagens descoloridas, trilha sonora em slo-mo, final infeliz, heroína dilacerada) para um desenho animado da Disney. Branca de Neve, no caso, preferiria não ter despertado do sono.

Em Strange mercy, Annie Clark não abandona os limites do conto de fadas. No entanto, ele se torna mais assombrado e neurótico, como num mashup de A bela e a fera com De olhos bem fechados. Tensão sexual (para toda a família).

Estamos no terceiro disco de Clark. E a impressão, agora muito clara, é de que ela decidiu demarcar uma trajetória, “assinar” a própria história. E, se essa trilha ainda não me parece exatamente singular, já mostra coerência tanto na sonoridade quanto nos temas que a cantora vai acumulando, reiterando.

Juntos, a começar por Marry me (2007), os discos vão narrando uma trama, que parece se tornar progressivamente mais pessoal (se bem que são sempre misteriosas as diferenças entre a personagem St. Vincent e a pessoa Annie Clark). É um disco, aparentemente, de “confissões”, de “descobertas íntimas”, sobre uma mulher em embate com o mundo, sobre histórias de amor que não se realizam, sobre culpa e frustração — a primeira faixa se chama Chloe in the afternoon, que foi o título em inglês para o Amor à tarde, conto moral de Eric Rohmer.

O script de Strange mercy, portanto, vai provocar as comparações inevitáveis com os, digamos, “thrillers psicológicos” de outras cantoras agoniadíssimas, como Aimee Mann (à frente de todas elas), Fiona Apple, Emily Haines. Há canções do disco, como Cheerleader e a faixa-título, que poderiam ter sido gravadas por qualquer uma delas. Há clichês do rock de “mulheres livres em crise” que St. Vincent segue, mesmo que inconscientemente.

Há momentos em que esses lugares-comuns deixam a dúvida: este sofrimento é de Annie Clark ou de todas elas?

Os versos facilitam a vida de quem escreve resenhas de música. Porque, de certa forma, está tudo lá: uma personagem que se revela sem pudores, que vai tirando a roupa e se examinando faixa a faixa. “Tive bons momentos com caras ruins, contei mentiras inteiras com meios sorrisos”, ela conta, antes de resolver que “não quero ser sua cheerleader, não mais” (em Cheerleader). Lá perto do fim do disco, já começa a soar como uma teenager carente: “Você alguma vez se importou de verdade por mim?”, ela pergunta, em Neutered fruit.

E ela canta, é claro, o desejo. Mais desejo (quase nunca correspondido) que sexo em si. “Você é uma festa que ouço quando colo o ouvido na parede”, ela admite, em Dilettante. “Mas ninguém está ganhando, e os tubarões estão nadando no vermelho”, conclui. A solução que encontra para não se decepcionar com tanta frequência é cínica. “Vou ganhar a vida dizendo às pessoas o que elas querem ouvir. Não é um plano perfeito, mas é o que temos”, afirma, em Champagne year.

Então taí: não é uma narrativa muito diferente daquela que havia aparecido em Actor ou em Marry me. A diferença é que, agora, Clark parece mais disposta a encontrar uma sonoridade também irritadiça, desgrenhada (e também uniforme, recorrente em toda a duração do disco). À voz delicada, sobrepõe camadas quase grotescas de teclados, interferências de guitarras, sintetizadores baratos que às vezes sugerem um filme de soft-porn para as madrugadas dos anos 80. E, como antes, arranjos de cordas roubados de peças de teatro infantil.

O efeito pode ser mesmo apaixonante (Annie é femme fatale em pele de gatinha manhosa), principalmente para quem conhece St. Vincent só agora. Para aqueles que dobram estas páginas há mais tempo, Strange mercy pode bater como um capítulo com algo de perturbador (e de redundante), ainda longe do clímax.

Terceiro disco de St. Vincent. 11 faixas, com produção de Annie Clark e John Congleton. 4AD Records. 74