Dia: agosto 10, 2011

2 ou 3 parágrafos | Melancolia

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Há os filmes muito ambiciosos, cheios de ideias e intenções: os superfilmes. Mas penso que às vezes nós, os espectadores mais esperançosos, nos esforçamos demais para encontrar num longa-metragem as reflexões urgentes e panorâmicas sobre grandes coisas – quando não sobre todas as coisas. Queremos que a fita de ação norte-americana nos diga algo importante sobre o governo Bush (e ela diz, se prestarmos atenção), enquanto que o drama sérvio pode ser que aponte para a crise de identidades no capitalismo globalizado. E, nessa ânsia de querer sempre muito assunto, talvez percamos de vista os filmes em si. Nos jornais, leio que Melancolia fala sobre o “mal-estar do mundo”. Talvez fale mesmo (Lars von Trier não é um cineasta de gestos pequenos). Só que prefiro encará-lo como um filme, me perdoem, menor. Não sei se pode. Pode?

Menor no sentido de que, na minha interpretação, ele não quer abarcar todas as crises do planeta (ou do século 21) dentro de suas 2h20 de duração. Não o vejo como um filme sobre o “mal-estar do mundo”, mas sobre um mal-estar específico, possivelmente sobre um estado de espírito: a depressão, o vírus da melancolia, o desencanto sem fundo (chame como preferir). A personagem principal é uma noiva deprimida (Kirsten Dunst, que ganhou Cannes), que vai congelando lentamente. O contraponto a essa mulher-estátua é a irmã da noiva (Charlotte Gainsbourg, que rouba a cena), sempre muito ativa, preocupada com todos os problemas. Trier opõe as personagens da forma distanciada e simétrica como costuma fazer, e nisso o filme lembra um pouco a estrutura de Dogville: tudo nos devidos lugares, quase didaticamente (as cenas iniciais, aliás, resumem a trama num slow-motion rococó).

Não é um filme para ser amado, acho (a primeira metade, que reprisa a ironia cruel e blasé de Festa de família, chega a ser tediosa). No entanto, ele cumpre um objetivo até “pequeno” de uma forma muito rigorosa: contamina a narrativa com a desilusão da protagonista, com essa desconfortável insensibilidade, e usa a premissa bombástica (à la disaster movie, na linha de Impacto profundo) como uma espécie de metáfora/hipérbole para a lente cinzenta que afeta o olhar de quem é atingido por esse apocalipse íntimo. Trier escreveu Anticristo enquanto estava abatido por uma depressão. O longa novo soa como o “day-after” dessa crise pessoal: imagens que remetem, agora “de longe”, a uma condição psicológica. Nesse sentido aí, me parece um filmezinho extraordinário. Mas que, pra mim, não quer explicar grande coisa alguma.

Trecho | O idioma do caos

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“Num conto que nunca cheguei a publicar acontece o seguinte: uma mulher, em fase terminal de doença, pede ao marido que lhe conte uma história para apaziguar as dores insuportáveis. Mal ele inicia a narração, ela o faz parar:

– Não, assim não. Eu quero que me fale numa língua desconhecida.

– Desconhecida? – ele pergunta.

– Uma língua que não exista. Que eu preciso tanto de não compreender nada!

O marido se interroga: como se pode saber falar uma língua que não existe? Começa por balbuciar umas palavras estranhas e sente-se ridículo como se a si mesmo desse provas da incapacidade de ser humano. Aos poucos, porém, vai ficando mais à vontade nesse idioma sem regra. E ele já não sabe se fala, se canta, se reza. Quando se detém, repara que a mulher está adormecida, e mora em seu rosto o mais tranquilo sorriso. Mais tarde, ela lhe confessa: aqueles murmúrios lhe trouxeram lembranças de antes de ter memória. E lhe deram o conforto desse mesmo sono que nos liga ao que havia antes de estarmos vivos.

Na nossa infância, todos nós experimentamos esse primeiro idioma, o idioma do caos, todos nós usufruímos do momento divino em que a nossa vida podia ser todas as vidas e o mundo ainda esperava por um destino. James Joyce chamava de “caosmologia” a esta relação com o mundo informe e caótico. Essa relação, meus amigos, é aquilo que faz mover a escrita, qualquer que seja o continente, qualquer que seja a nação, a língua ou o gênero literário.”

Trecho de Línguas que não sabemos que sabíamos, de Mia Couto.