Dia: maio 9, 2011
Os discos da minha vida (39)
Hoje, na incrível novela dos 100 discos que levaram a minha vida ao delírio: sexo, violência, solidão, horror, êxtase, agonia, manhãs de domingo e o penteado do demônio. Entre outras atrações imperdíveis.
Ainda falta um tantinho para que este ranking chegue ao fim (para efeito de comparação: se estivessemos numa viagem de carro entre Rio de Janeiro e Brasília, este post seria Paracatu). Mas toda hora é hora de lembrar a vocês que esta é uma lista absolutamente pessoal. Ela obedece a critérios obscuros (e obtusos) e é de inteira responsabilidade de Tiago Superoito, o senhor soberano deste latifúndio. Todas as reclamações devem ser feitas diretamente a ele, portanto. E na caixa de comentários logo ali embaixo.
O cardápio do dia é o seguinte: um disco que já se tornou clássico (mas é daqueles clássicos que ainda mordem, atenção com ele!) e outro que vai acabar se tornando uma referência, um cânone, um álbum grandalhão daqueles que você guarda para mostrar aos bisnetos – isso, é claro, se deus for justo com os homens de bem.
À colheita, irmãos!
024 | The Velvet Underground & Nico | The Velvet Underground | 1967 | download
O primeiro disco do Velvet Underground me acertou primeiro no peito e depois no cérebro. Hoje tenho certeza de que existe algo errado nessa ordem (é um disquinho de nariz empinado, certo?), mas foi o que aconteceu. Eu tinha 14 para 15 anos quando Sunday morning caiu no meu aparelho de som e ficou ali, deitada de monoquini, torrando na brisa. É uma canção tão adorável que, por muito tempo, evitei ouvir o restante do disco. Só depois, alguns meses depois (nota do revisor: na época Tiago tratava os discos com um pouco mais de discplicência, sem respeitar a ordem das faixas ou as intenções do autor; talvez ele deva recuperar o hábito, em minha opinião), percebi que as outras faixas tratavam de temas um pouco mais angulosos. E havia definitivamente algo macabro em Venus in furs, mas eu não sabia definir o conteúdo perturbador da canção. O disco acabou me seguindo por muito tempo, e me segue até hoje. É o meu favorito do Velvet, talvez por combinar com harmonia o delicado e o terrível, amor e morte. É daqueles álbuns que podemos começar a ouvir aos 10 anos de idade e continuar até o dia em que nossos dentes começarem a cair. Aposto que só vou entender The black angel’s death song quando eu fizer oitentinha. Top 3: Sunday morning, Venus in furs, I’ll be your mirror.
023 | Odelay | Beck | 1996 | download
Um disco de adolescência. Ah, meus 14 anos! Nada de muito interessante acontecia. Talvez por isso eu tenha me apegado a álbuns superhiperativos, rios de ideias escorrendo pelas bordas. Odelay era a mais querida dessas jukeboxes: Beck Hansen era meu ídolo porque parecia possível ser alguém como ele. Não era um rockstar nos moldes tradicionais (e, aparentemente, ele também desenvolvia paixões platônicas as mais loucas) e sempre me soou mais como um nerd no controle de um painel preenchido por botões coloridos. De qualquer forma, ele sabia operar a maquininha como um jedi: quase tudo o que sei sobre colagem pós-pós-moderna de sons e ideias está contido aqui, em Odelay (depois, é claro, conheci Prince e as coisas começaram a ficar mais complicadas). Where it’s at é a obra-prima do sujeito, sem concorrentes à altura (sorry, haters). Ainda não fizeram nada nem remotamente parecido a The new pollution. Mas não vamos esquecer que é um disco também emocionante, e de um jeito mundano: ouça Jack-ass, uma das canções que aqueceram e adoçaram a minha ó-tão-friorenta juventude. Bateu até um tiquinho de saudade, viu. Top 3: Where it’s at, The new pollution, Jack-ass.
Depois do pulo, confira os discos que já apareceram neste ranking
Goblin | Tyler, the Creator
Música pop também é uma questão de timing. O disco certo na hora certa. A canção que, de alguma forma, sintoniza o momento em que foi criada.
Um álbum como Dirt, do Alice in Chains, não nos atingiria com tanta força se lançado depois de 1992. Longe da primavera grunge, como ele teria se comportado? Não faço ideia. E de que modo ouviríamos a estreia de The fat of the land, do Prodigy, em 2005, em 2011? Talvez como uma nota de rodapé. Quem sabe?
Experimente “ler” a trajetória da música pop como quem vira coleções antigas de jornais: ele, o pop, conta a nossa história num acúmulo de flashes, de textos efêmeros, que logo se tornam datados. Cada disco colabora para esse grande arquivo. Mas há os que, por um motivo ou outro, ganham o peso de manchetes de primeira página: Nevermind, Parklife, Is this it, Kid A, esses abrem capítulos (goste deles ou não).
Existe uma hierarquia no pop, e estou cada vez mais certo de que ela é definida menos por conceitos imutáveis de “beleza” ou “rigor” (intrínsecas a cada obra) e mais pela forma como os álbuns enfrentam o mundo. Sinto que os melhores discos pop estão sempre querendo interpretar um “estado de coisas”, reportar (mesmo que por uma via introspectiva, totalmente pessoal) impressões e sensações que estão no ar.
É uma vocação mais próxima do jornalismo (da reportagem, da crônica, do artigo, da charge) que da literatura ou das artes plásticas ou do cinema ou da música erudita.
Bem. Mas essas são ideias meio ambiciosas que eu desenvolveria se tivesse mais tempo. E, é claro, se isto aqui não fosse um blog nanico, relutante, incompleto, que nunca chega lá.
No mais, este é apenas um post sobre Goblin, o disco novo de Tyler the Creator. Bom dia.
Tyler Okonma, vocês sabem, é um rapper de 20 anos que lidera o coletivo Odd Future Wolf Gang Kill Them All (também conhecido como Odd Future ou OFWGKTA). O grupo de Los Angeles — formado por oito MCs, além de produtores e ilustradores — se fez notar com um turbilhão de mixtapes (sempre de graça, no site oficial) e por shows no esquema panela-de-pressão (performance-zoeira, muito da agressiva).
O New York Times e o Guardian, por exemplo, escreveram artigos muito elogiosos sobre o combo de hip-hop: foram comparados ao Wu-Tang Clan e ao NWA. Mas, por enquanto, o entusiasmo em torno do Odd Future se dá na internet: os blogs de rap não o respeitam os garotos (eles têm entre 18 e 20 anos), mas os sites de indie rock dão trela. Nos discos, Tyler garante que não está nem aí para esse falatório: escreve músicas para ele próprio e mais ninguém.
“Os críticos não me conhecem, eles não entendem”, disse, em entrevista ao NY Times. “Eles não tiveram 18 anos em algum momento? Nunca pensaram só na diversão?”
O importante, acima de tudo, é que a saga do Odd Future é uma ótima história, jornalisticamente falando.
Qualquer repórter de cultura mais ou menos bem informado há de encontrar no Odd Future um quadro de sintomas deste início de século. Está tudo aqui: a atitude libertária em relação ao consumo de música (mixtapes de graça!) e ao próprio estilo (que vai do punk ao R&B), a naturalidade no trato com a web, as tentativas de quebrar (às vezes literalmente) a barreira que separa o palco da plateia, a noção de que o pop pode ser um happening, arte de rua, uma festa com acesso livre.
Goblin é o primeiro disco que leva esse “Odd Future Way of Life” a um patamar próximo daquilo que chamávamos de mainstream: ele sai pela XL Recordings, de Adele, Vampire Weekend e M.I.A.
E, como costuma acontecer nesses ritos de passagem, Tyler sente o baque.
Em parte, Goblin é um disco sobre escrever música para uma plateia grande demais. Também é um álbum que tenta condensar os mandamentos do Odd Future numa espécie de manifesto, uma carta de visitas: é longo (73 minutos), tem muitos convidados especiais e experimenta de tudo.
Simbolicamente, ele já nasce muito importante. Representa um momento para o música pop da mesma forma como, digamos, Kala, da M.I.A., representava em 2007. Parece inútil ir contra essa força do disco: goste ou não, ele é o elefante no meio da sala.
O bacana é (e isso pouco tem a ver com relevância) é que Goblin também se sai muito bem como um disco de hip-hop pós-Wu-Tang, pós-Eminem: é daqueles álbuns que comprovam o poder do gênero abrigar e amplificar discursos absolutamente francos e até inadequados, sem filtros ou autocensura. É um disco todo desgrenhado, sujo, feito de cuspe, pensamentos impróprios e vísceras. E que, não à toa, flui no formato de uma confissão do narrador (o próprio Tyler) ao terapeuta (que volta e meia dá as caras, com um vozeirão cavernoso).
E a beleza estranha de Goblin está aí: Tyler entende que tem novas responsabilidades (antes de Radicals, a faixa mais violenta, ele avisa ironicamente que o conteúdo da música é “ficção”), mas não quer abandonar o mundo narrativo que criou. E o que podemos fazer quando a encenação da vez tem as cores de uma HQ de Frank Miller?
Daí os dois movimentos do disco: Tyler controla o id selvagem (para explicar-nos que é tudo brincadeirinha) e deixa que ele se solte no interior das canções (as confissões domésticas de Nightmare e a dor quase romântica de Her são de doer). Algo se perde nesse processo, é verdade: aposto que os fãs vão reclamar de uma postura mais cautelosa do rapper. Mas, quando deixa claro que escreve contos de ficção (ou de autoficção, digamos), Tyler vai criando camadas no próprio discurso e nos guiando a um estilo denso, espertíssimo. Um conto de monstros (Transylvania) para sujeitos sem glória (Goblin).
Musicalmente, o disco é menos complexo: ele deixa transparecer os buracos no cenário, a fiação pendurada no teto, a origem “underground”. A produção, tocada pelo próprio Tyler, às vezes beira o singelo, muito aquém do que se ouve num álbum do Kanye West ou do The Weeknd, por exemplo: é como se, nessa opção por expor o orçamento reduzido do filme, Tyler criasse limites para o jogo. E aí acaba que fica muito bonito, por exemplo, quando ele encontra “soluções baratas” para dar estofo a faixas como Goblin (o filete de melodia triste, orquestrada, que invade o rap de vez em quando), Nightmare (quem odeia dubstep vai detestar: piano + som de batidas na máquina de escrever) e Radicals (que tem um quê de lounge, quando a pauleira sobre “matar pessoas, queimar merda e foder a escola” termina). Não é sempre que acontece, no entanto.
Nada que ofusque a fala de Tyler: o que nos hipnotiza de ponta a ponta do disco é o adolescente vaidoso, sexy, suicida, escatológico, carente, megalomaníaco, estúpido, engraçado, boca-suja, o rei das polêmicas vazias, o hype que não se sustenta, o moleque que organiza o movimento e pensa em mudar o pop, a América, o mundo. “Não sou modelo para ninguém”, ele avisa. Não?
Goblin está longe de ser o melhor disco de rap do mundo. Mas ele traz um desejo de relevância, e enfrenta o mundo com tanta graça, que o esforço compensa o que há de imaturo no processo. Imperfeito do jeito que é, talvez seja o disco perfeito para 2011: se você perguntar para mim o que há de mais urgente na música pop, vou apertar o play. E ficar quietinho.
Segundo disco de Tyler, the Creator. 15 faixas, com produção de Tyler e Left Brain. Lançamento XL Recordings. 8.5/10