Superoito express (36)

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Let England shake | PJ Harvey | 7.5

Quando o contista que sempre escreve livros em primeira pessoa, íntimos, resolve lançar um romance histórico em terceira pessoa, o leitor fiel primeiro estranha e depois entende que, no desvio inesperado, o ídolo se põe nu. Soa como uma especie de recomeço. Na saga de PJ Harvey, Let England shake é essa obra que desorienta: musicalmente, a cantora permanece numa zona de conforto (cercada por uma “guarda real” que inclui o parceiro John Parish e o produtor Flood), mas o tema e o contexto das canções — que poderia render um roteiro de filme de guerra pra inglês filmar — obriga a cantora a romper o próprio estilo num ponto fundamental (e vou explicar de um jeito singelo, mas lá vai): em vez de olhar para dentro, ela agora olha para fora.

Daí que, se o disco não chega a parecer um objeto totalmente estranho dentro do repertório de Harvey (a sonoridade, uma espécie de folk rock despedaçado, lembra um pouco A man a woman walked by, que ela gravou com Parish em 2009), me parece o mais arriscado de uma carreira com muitos riscos. É que, no momento em que ela se obriga a seguir um “script” e ir descendo ao passado sangrento da Inglaterra (e com toda uma pesquisa musical que é aparece de modo sutil, um pouco como uma atualização das war songs de Dylan), ela deixa de depender do tal “ponto de vista feminino” que conduziu discos inteiros, como Uh huh her (2004) e Is this desire? (1998). Não serei eu a desconsiderar um esforço desses.

Mas acredito que essa transformação — que tanto entusiasma os fãs do disco — acaba escondendo ou até compensando as fragilidades do álbum, como se fosse o suficiente para provar que Harvey é uma grande artista. Quanto mais ouço, menos forte, menos “importante” ele parece. Principalmente a segunda parte, quando as ideias de Harvey (tanto musicais quanto poéticas) vão se quebrando em pequenas narrativas que se dissolvem no ar. Já a primeira parte contém, de verdade, algumas canções valentes: The words that Maketh Murder levaria Nick Cave às lágrimas, e a balada England, que parece convidar o espírito de Joan Baez para bater um papinho com Joanna Newsom. Mudar de perspectiva é um desafio para Harvey, mas me pergunto se ideias monumentais não deveriam vir acompanhadas de canções um pouquinho mais corajosas. Admirável, mas não consigo cair de amores.

Here we rest | Jason Isbell and the 400 Unit | 7

É o disco em que entendemos, muito didaticamente, por que Jason Isbell saiu do Drive-by Truckers, para onde provavelmente nunca voltará. Enquanto a banda procura um country rock lascado, que combine com personagens degenerados, o som de Isbell se torna cada vez mais polido, como se o objetivo do compositor fosse as paradas de sucesso para o público “adulto contemporâneo”. Dito isso, lembro que Isbell é um compositor tão talentoso quanto a dupla principal dos Truckers e, se a produção do disco higieniza tudo o que encontra pela frente, as canções sobrevivem a esse perfume de “soft rock”. É um disco para os fãs de Sky blue sky, do Wilco, e de The king is dead, do Decemberists: melodias aparadas, sem fissuras, como pedaços de madeira talhados com esmero e amor pelo ofício — no mais, Alabama Pines, Codeine e Stopping by são canções que o Uncle Tupelo lançaria com muita alegria no início dos anos 90.

12 desperate straight lines | Telekinesis | 7

Aprendam aí, Jonas Brothers: Michael Lerner cumpre todos os mandamentos do power pop, mas nem por isso soa como se estivesse diluindo o repertório do Fountains of Wayne e do Wings. Os discos do Telekinesis são aparentemente muito simples, quase tolos (o riff estrondoso, os versos cheios de tristeza juvenil, o refrão que ilumina uma cidade inteira; tudo isso em menos de três minutos), mas também muito precisos nesse tentativa de explorar tudo os fundamentos do gênero: franqueza, doçura, alguma melancolia. Está tudo no título: 12 linhas retas e desesperadas. Em 50 ways, Lerner cita Paul Simon (mas soa como uma versão nervosa do The Shins). Em Car crash, fala sobre um caso de amor que começa bem até o momento em que você começa a se sentir tão sozinho. Em Dirty thing, narra o início o meio e o fim de um namoro de verão. Não tem muito happy end por aqui. E é tudo muito dolorido, ainda que pareça fácil.

Hotel Shampoo | Gruff Rhys | 6

Lembro que, quando ouvi Rings around the world (2001), imaginei o seguinte: quando o Super Furry Animals assumir de vez, sem culpas, o amor por Burt Bacharach, talvez grave o disco pop mais bonito do mundo. A banda sempre ficou em cima do muro em relação a isso, mas, 10 anos depois, Gruff Ryhs parece praticar essa ideia de “disco de easy listening” com este Hotel shampoo. A má notícia é que, além de não ser o disco pop mais bonito do mundo, o álbum joga água na feijoada de Rings around the world, amenizando quase tudo o que aquele disco dizia. Se aquele era um álbum que brilhava forte no escuro, Hotel shampoo é de pelúcia, uma tentativa meio estabanada de pescar e adoçar algumas referências do rock dos anos 60. Sem muita convicção. Como se Gruff avisasse: estou brincando de ser gentil, aguardem o meu próximo disco. E, apesar de faixas muito boas (como Candy all over), acaba soando, no máximo, engraçadinho.

10 comentários em “Superoito express (36)

    Pedro Primo disse:
    fevereiro 24, 2011 às 10:26 pm

    Tive o mesmo problema com o da PJ Harvey, eu gostei muito nas primeiras audições, depois fui achando cada vez mais fraco. E as vezes soa como exercício do próprio estilo. De qualquer forma, minha favorita é a lindíssima “On Battleship Hill”.

    Meu disco favorito dela ainda é o “Stories From The City, Stories From The Sea” de 2000.

    Samuel Vaz disse:
    fevereiro 24, 2011 às 10:52 pm

    Já eu gostei bastante de Let England Shake. Apesar de bem político, achei o material bem rico e cru, frio e bonito ao mesmo tempo… Não há sermões nem palavras afiadas, mas a mensagem dela é entregue, e de forma simples. Talvez alguém que viva em um país que mande seus soldados para a guerra se identifique mais ainda com o disco do que eu, que o apreciei muito.

    Tiago, adoraria ver seus comentários sobre o “debut” do Beady Eye e o novo da Lykke Li.

    Tiago Superoito respondido:
    fevereiro 25, 2011 às 1:21 am

    Tá anotado, Samuel, vou ouvir e depois digo o que achei.

    Cara, concordo com tudo o que você escreveu sobre o disco, só sinto falta de canções mais fortes na segunda metade. É um disco que, em tese, é monumental mesmo.

    Pedro, On Battleship Hill é das minhas favoritas também. E da Harvey eu também prefiro o Stories From The City, mas gosto de todos os discos dela. O anterior, White Chalk, eu gosto muito e acho que, musicalmente, é mais ousado do que este novo.

    Daniel disse:
    fevereiro 25, 2011 às 1:26 am

    Não preciso dizer q gostei do Telekinesis, né? :) Mas eu acho o primeiro melhor.

    Agora…”É um disco para os fãs de Sky blue sky, do Wilco, e de The king is dead, do Decemberists” ?! Baixando JÁ.

    Aliás, o Drive-By Truckers é uma descoberta recente, via Tiago Superoito.

    Tiago Superoito respondido:
    fevereiro 25, 2011 às 1:30 am

    Daniel, vai fundo que é bom.

    Daniel disse:
    fevereiro 25, 2011 às 11:00 am

    É mesmo muito bom o disco, Tiago !!

    Diego Maia disse:
    fevereiro 25, 2011 às 5:30 pm

    Tiagão, sua capacidade de falar sobre qualquer coisa é impressionante.

    Tiago Superoito respondido:
    fevereiro 25, 2011 às 5:32 pm

    Na maior parte do tempo é embromação, Diegão! Hehe. :)

    Eu avisei, Daniel!

    Diego Maia disse:
    fevereiro 25, 2011 às 6:15 pm

    Não é, não.
    No mínimo você engana bem, hahaha (brincadeira).
    Sério, é admirável.

    Tiago Superoito respondido:
    fevereiro 25, 2011 às 6:23 pm

    Valeu, bróder.

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