Dia: novembro 9, 2010

Superoito contra as fotografias

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Sinto sua falta, sinto sua falta, sinto sua falta, sinto sua falta, repeti mentalmente dez ou doze vezes, depois destravei o porta-retrato, dobrei a fotografia e a escondi na menor gaveta do meu armário, aquela que quase nunca abro, sob as meias e os pijamas que quase nunca uso.

Antes, enfrentei a foto mais uma vez – a última, prometi a mim mesmo. Era uma imagem quase singela: eu a abraçava de lado e ela, um pouco sem jeito, curvava o corpo em direção à câmera; eu sorria timidamente, ela parecia feliz; minha camisa era preta e a dela era colorida, apertada no busto; meu cabelo muito curto e o dela também; fazia sol e o céu brilhava em azul-bebê.

O que aconteceu depois? Minhas fotografias não explicam. Elas flagram apenas os nossos instantâneos de alegria, contam uma história incompleta, me maltratam. Notei, talvez tarde demais, que registrei uma versão idealizada do nosso namoro – e ela, essa distorção agradável da realidade, enfeitou minha estante, preencheu a minha sala. Um tipo bonito de ficção.

Amigos dizem que não devo me arrepender de nada. Que não devo sentir culpa. Que não devo pensar no que poderia ter acontecido. Que não devo recordar os planos que foram abandonados. Que preciso esquecer isso e esquecer aquilo. Mas o tempo passa (são dois meses desde a separação) e não consigo: eu ainda me arrependo de tudo, sinto culpa, não esqueço.

Me arrependo, por exemplo, por não ter sido corajoso o suficiente para encerrar o namoro um pouco antes, quando eu estava em vantagem (e é um jogo). Mas às vezes sinto culpa por não ter tomado todas as providências para consertar a nossa crise, renovar o contrato, curar a doença. Há momentos em que olho para o espelho e duvido da minha sanidade. Por que tanta saudade por algo que me fazia tão mal?

Desde o fim do namoro, que durou mais ou menos seis anos, cancelamos todo e qualquer contato. Para ela, não existo (talvez algum vestígio, algum sinal, mas nada muito concreto). Para mim, ela tomou o rumo para outra galáxia (ainda que, masoquista, eu teime em procurar uma ou outra informação em estrelas distantes). E a nossa história deveria terminar aí. Os créditos sobem e as pessoas vão para casa. Mas descobri que sou o homem preso na sala de projeção, assistindo ininterruptamente ao vazio de uma tela branca.

Será que ela sente o que eu sinto? O que acontece do lado de lá?

A ignorância, dizem, é uma bênção. Estou começando a entender o porquê. É a primeira vez que passo por uma separação tão brutal – foi o meu namoro mais longo – e, por isso, tento manter a concentração e a calma. Ajuda, é claro, não saber o que acontece na realidade paralela onde ela vive. Já escrevi sobre isso. Mas tento, se bem que nem sempre consigo, fabricar a aparência de que estou melhorando, que estou seguindo em frente. O cotidiano vai às mil maravilhas, o tempo é santo remédio e sou um sujeito forte, mais resistente do que eu imaginava. Perguntam se estou bem e respondo: melhor a cada dia!

Tento não transformar o caso num drama, já que há tantas coisas mais importantes acontecendo no mundo.

Mas é uma mentira.

Talvez seja algo que passamos de geração a geração: quem se separa tem o direito a se fazer de órfão, de vítima (mesmo quando não há algozes), ganha passe livre para chorar pitangas e pedir asilo a desconhecidos. Mas quando o desespero dessa fase inicial perde o impacto, quando o tempo passa e a performance começa a parecer corriqueira aos olhos da plateia, o processo entra numa etapa ainda mais dolorosa, já que solitária.

Hoje sou eu e as fotografias. Eu contra as fotografias. Elas me entendem, me denunciam mesmo quando tento fugir de todas as memórias que elas ressuscitam. Eu as escondo (as fotos e as memórias) para que eu não as encontre. É um esforço inútil. Procuro a menor gaveta do meu armário, aquela que quase nunca abro, para obrigar que, mais cedo ou mais tarde, eu esqueça todas essas lembranças que permanecem, contra a minha vontade, ainda vívidas.

Elas acabam sumindo? Se sim, cedo ou tarde? Falta muito ou pouco? Estamos quase lá? Como a história acaba? Existe redenção? Falta muito ou pouco? Estamos quase lá?

Devemos ser realistas, pelo menos por um parágrafo: percebo que, como aconteceu com a temporada mais terrível do meu namoro, minha reabilitação será uma história longa, secreta e desinteressante – um espetáculo enfadonho de tão repetitivo, que inspira textos muito semelhantes aos que já foram escritos; que fracassa antes de entrar em cartaz.