Bromst | Dan Deacon
Quinze minutos do novo álbum de Dan Deacon e a sensação é dolorida: você acordou com 40 graus de febre, uma enxaqueca que parece perfurar as pupilas, pontadas no peito, dormência na coluna. No espelho do banheiro, descobre novos fios de cabelo branco enquanto repara que a cortina do banheiro não gruda mais na parede e o último tubo de pasta de dente foi adotado como lar pelas formigas. A chuva da madrugada ensopou a sala de estar e o pacote de pão guardado na geladeira, bem, o que você queria?, está mofado. O relógio encontra-se atrasado em trinta minutos. E isso significa o seguinte: você perdeu o compromisso do dia e não há como recuperá-lo. Começamos mal. Terrivelmente mal. E a tendência, meu amigo, é que as coisas piorem.
Mas aí vem uma voz miúda, ingênua de tão otimista, e te conforta. “Calma, tudo vai dar certo.” Você, estúpido, não acredita nela.
Bromst é um ótimo disco: inventivo, inquieto, cheio de tentáculos, um polvo elétrico. Aviso, porém, que a experiência não é mais tranquilas. Agora mesmo, decidi ouvi-lo em volume altíssimo, no som do carro, no longo caminho que separa a casa da minha mãe do meu apartamento. Tive que tomar dois comprimidos de Tylenol. Não é moleza. Não é exatamente agradável. Entendo perfeitamente aqueles que, na primeira overdose de ruídos, jogam a toalha e vão fazer algo mais saudável da vida.
O mesmo vale para o show do sujeito. É pegar ou largar. Os primeiros minutos são tão agressivos e caóticos, tão what-the-fuck, tão “mas que porra barulhenta é essa?”, que funcionam perfeitamente como um mecanismo de triagem de público. Os que ficam estão preparados para o que der e vier. Serão recompensados com uma performance verdadeiramente espontânea, vibrante, única (top 5 do Tim Festival do ano passado).
No palco (ou melhor: junto ao público, já que Deacon não é de formalidades), o DJ/compositor/provocador de Nova York chuta a fronteira que separa os artistas da plateia. Entenda como uma espécie de cartão de visitas: Deacon se apresenta, na lata, como “um de nós”. É um fã/consumidor/produtor de música adaptado ao ritmo frenético de uma geração que recorta, cola, dobra e recicla, não necessariamente nessa ordem. E que adora aparecer.
Nos discos, Deacon é o anfitrião de uma festa nonstop, mas que nunca existiria de verdade (você imagina passar uma noite inteira ouvindo o noise-furadeira do rapaz? Eu não). O álbum anterior, Spiderman of the rings, foi cultuado por pouca gente até porque, aposto, não foram muitos os que se aventuraram a abraçar um objeto tão pontiagudo. Que machuca. Que arranha os pobrezinhos dos nossos ouvidos sensíveis. Eis a ironia da coisa: Deacon assimila radicalmente a velocidade do nosso mundo; mas, para assimilarmos o som de Deacon, precisamos de algum tempo.
Paciência.
É que Deacon não está aí para padrões, fórmulas de gênero – não dá nem para afirmar que ele mescla isso com aquilo. É um som, em grande parte, aleatório, descontrolado, improvável. Spiderman of the rings parecia uma trilha de videogame e, ao mesmo tempo, uma demo de hardcore. Impossível classificar (é mais fácil, por exemplo, tentar apontar referências de uma banda barulhenta como Crystal Antlers, que pelo menos segue uma lógica interna, leia ali embaixo). Em Bromst, ele tenta um tom mais melodioso e algumas estruturas mais convencionais de canção (o que rende faixas até comoventes como a abertura Build voice), mas ainda não segura as rédeas da música. É a beleza do disco.
Que soa naturalmente atual. Quando Deacon arrisca uma atmosfera psicodélica à Animal Collective (como em Snookered), não temos o direito de imaginar o músico ao redor de uma fogueira, acompanhado dos amigos doidões. Nossa imagem de Deacon é e sempre será a do geek gorducho mixando arquivos de mp3 num quarto bagunçado. Daria para escrever alguns parágrafos sobre a forma como ele nos faz repensar o conceito (tolo) de autenticidade que associamos a certas bandas de rock. Sobre simulacro, pós-modernidade, etc. Mas não gastarei meu tempo: Bromst é um álbum que nos tortura até o momento em tentamos entender um método muito particular de mastigação de elementos do rock e do pop. Leva algumas semanas, mas é um esforço que compensa.
A dor de cabeça não passa, mas fica até parecendo que o estranho futuro do indie rock é este, o sol raiou, nos cegou e finalmente chegamos lá. Só uma impressão. Que passa. Mas que disco.
Álbum de Dan Deacon. 11 faixas, com produção de Dan Deacon. Carpark Records. 8.5/10
BÔNUS TRACKS
Tentacles | Crystal Antlers | 7.5 | Como clímax para o EP lançado em 2008, a estreia do sexteto californiano é um balde de gelo: os fãs certamente não esperavam (ou aprovariam) um álbum de esqueleto tão melodioso e acessível (exposto em faixas como Andrew). Na maior parte do tempo, soa como um You & me, do Walkmen, gravado na garagem de um fusca. Quanto mais tempo se investe no disco, porém, mais essa primeira impressão se mostra simplesmente preconceituosa. Não há nada errado quando uma banda tão virulenta tenta se apropriar de convenções do rock para colocá-las numa outra perspectiva – eu vejo como um esforço dos mais interessantes (e era o que me agradava nos primeiros álbuns do White Stripes). Jonny Bell vai rasgando os refrãos como quem enfrenta uma sessão de karaokê às duas da manhã. Mas quem rouba a cena é Victor Rodriguez, no órgão (a faixa de encerramento, com um quê de prog rock, vai do ambient à psicodelia). A lisergia do The Doors encontra a inconsequência noise do No Age – e tente imaginar por alguns segundos o quanto isso não é exatamente previsível.