Dia: março 17, 2009
The Spirit – O filme
The Spirit, 2008. De Frank Miller. Com Gabriel Macht, Jaime King, Eva Mendes, Samuel L. Jackson e Scarlett Johansson. 108min. 4/10
No blog de The Spirit – O filme, Frank Miller trata Will Eisner com Mentor (assim, com maiúscula). “Eisner quis criar algo novo, inteligente e exploratório. Foi isso que ele fez. É isso que estou fazendo”, escreveu, sobre a adaptação da HQ.
Comparações desse tipo dão a entender que existiu, no mínimo, um entrosamento de ideiais entre os estilos de Eisner, que morreu em 2005, e os traços de Miller, autor de Sin City, 300, Batman: ano um. Mas existiu mesmo? E em que sentido? (Algum fã pode me ajudar?)
Não conheço tão bem os dois ídolos das graphic novels. Estou de gaiato no navio, perdão. Porém, se houve esse tipo de comunhão, esta tradução de Spirit parece perdê-la completamente de vista. Até onde sei, Eisner é o arquiteto das metrópoles, cujos personagens (bastante vivos) convivem num ambiente de prédios, chuva e concreto – e, não raramente, são devorados pelos perímetro urbano. Já Miller me parece obcecado por conflitos chapados, dramas físicos, pela violência bestial que explode no mundo. Um me impressiona por uma elegância melancólica, discreta; o outro é um bruto.
The Spirit – O filme força o encontro entre Miller e Eisner. Não li a série original, mas existe uma tensão permanente em cena que deve interessar aos fãs dos escritores. E também um descompasso estranho, que faz do filme uma peça incompleta, fria, um projeto que não deu certo.
Admito que assistir à sessão foi uma experiência desagradável. Não provocada por excessos visuais e ambição desmedida (como acontece com Watchmen) ou pelo clima de matinê aguada (caso de Quarteto fantástico, digamos). Miller prefere o meio-termo – e como neva em Central City! Mas acredito que por não parecer uma homenagem fluente ou minimamente intrigante – para quem não leu a graphic novel, como eu, deixa até a sensação de que o gibi é uma enganação.
Não dá para ser injusto e reclamar da ausência de Robert Rodriguez (não imagino qual teria sido a extensão do trabalho de Miller em Sin City), mas fica muito visível o desconforto de Miller com o cinema. Sem intimidade com o meio, ele se cerca de efeitos visuais e adota uma encenação noir chapada (olha o estilo duro do sujeito aí), com muitos trechos monocromáticos e detalhes de animação – um formato que se aproxima demais de Sin City e, ao mesmo tempo, maltrata os personagens, tratados como caricaturas.
É uma transcrição bastante seca, desarranjada, quase um borrão. Nas primeiras cenas, Miller até consegue compor a atmosfera típica de Eisner (o herói morto-vivo declara amor à cidade decadente), mas não dá conta de tirar do papel quase nenhum conflito entre os personagens – e os vilões extravagantes, que deveriam provocar risos (ou sabotar a trama, sabe-se lá), provocam o efeito de uma ingênua comédia pastelão. Todo o miolo da narrativa é confuso, frouxo – a cada cena, dá para imaginar o mico que os atores pagaram diante da tela verde.
Vão dizer que Sin City já era mecânico assim. Não era. O mundo artificial de Rodriguez jogava o tempo todo com elementos do cinema e dos quadrinhos. O quanto de gibi tem o cinema noir? O quanto de noir tem o gibi de Miller? Eram essas as perguntas. The Spirit trata o experimento de Miller como uma fórmula, mas se contenta em construir um filme-gibi – falta vontade de cinema, mas antes disso, o diretor simplesmente não parece saber o que fazer com as câmeras, os atores, o texto e os efeitos.
Fiquei com um pouquinho de saudades de Zack Snyder, admito. E isso não está certo.
2 ou 3 parágrafos | Sua resposta vale um bilhão
Apesar de adotar uma estrutura semelhante ao livro de Vikas Swarup – a cada pergunta do game show, um novo causo é narrado pelo personagem principal -, Quem quer ser um milionário? é uma adaptação absolutamente infiel às tramas do original. O que é bom, por um lado (o filme dialoga com o livro, acrescenta algumas ideias); e um tanto incômodo (mas compreensível), por outro.
O complicado de engolir é a forma como o roteirista Simon Beaufoy deleta quase tudo o que existe de grotesco ou perverso no livro. O narrativa perturba por adotar um tom de fábula adolescente para empilhar contos que oscilam entre o pitoresco e o brutal (num dos primeiros capítulos, para ficarmos com um exemplo, um padre curra um menino depois de cheirar uma carreira de cocaína – e isso é só o começo). Em alguns trechos, lembra a franqueza de O rei de Havana, de Pedro Juan Gutierrez. Troque Havana por Mumbai e cá estamos.
Ok, não é tão visceral. No livro (7/10), há muitos dos truquezinhos apelativos que encontramos no filme (e o capítulo final, com surpresas melodramáticas à rodo, é de provocar vergonha alheia). Mas Swarup me parece mais digno do despudor de Bollywood – e da tradição indiana de contar histórias, lendas, fábulas – que o próprio filme de Boyle. E aí esbarramos numa curiosidade até engraçada: a figura do narrador, adaptado a um ambiente de violência a ponto de tratá-lo com bom humor, lembra bastante Cidade de Deus – o livro de Paulo Lins.