Dia: março 9, 2009

Procedimento operacional padrão

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Standard operating procedure, 2008. De Errol Morris. 116min. 7/10

A crítica quer filmes complexos. Mas o quanto de complexidade há nas críticas?

É uma generalização tola, provavelmente sem resposta, um tiro pela culatra (reconheço meus erros!), mas não consigo pensar em outra coisa. Honestamente: há textos sobre cinema que parecem me tratar, no mínimo, como um asno. 

Já disse isso antes, volto a dizer. Há parágrafos que me atormentam. Leio e fico me perguntando: quem ele quer enganar? Ou melhor: quem ele pensa estar enganando?

Todo mundo tem algo contra críticos de cinema. Também tenho. Os que mais me incomodam são aqueles que tratam o leitor como um ser que, por mais que se esforce, nunca dará conta de assimilar com um certo grau de profundidade a experiência de assistir a um filme.

Talvez essa parcela de críticos tente se comunicar com um certo “espectador médio”, quase sem salvação, coitadinho da silva, fã de fitas de ação desmioladas e de comédias dirigidas por Daniel Filho. Mas, vem cá: se é que existe, esse espectador gastaria tempo lendo críticas de cinema? E o crítico teria essa função evangelizadora?

Dois exemplos recentes que me tiram do sério: Quem quer ser um milionário? e Procedimento operacional padrão

No primeiro caso, há os críticos que não aprovaram o filme (direito deles) e aqueles que, prontos a levar o rebanho para o bom caminho, tomam uma posição semelhante à de um pastor da mais fundamentalista das igrejas evangélicas. O filme de Danny Boyle vira a representação do demônio. Cabe à crítica assumir o papel de um panfleto que alerta os espectadores (pobrezinhos, não sabem nem amarrar os próprios sapatos!) sobre o perigo de brincar com um lobo-em-pele-de-cordeiro. Alguém cai nessa? Soa tão pobre quanto a defesa do longa como uma “montanha-russa de emoções”.

Com Procedimento operacional padrão, acontece algo diferente. Parte da crítica se limita a sublinhar a importância temática do filme, que investiga os abusos cometidos por oficiais norte-americanos contra prisioneiros iraquianos. O documentário de Errol Morris trata de um assunto importante; logo, ele é importante. Os leitores-asnos que se contentem com o argumento de meia-tigela.

Uma lição que aprendi ainda no primário: a forma mais fácil de defender um ponto de vista é eliminar possibilidades de contradição. Um discurso sólido não admite arestas ou hesitação, muito menos possibilidade de erro. Ainda hoje, tenho sérias dúvidas de que esse método quase matemático sirva para analisar obras de arte. No cinema, na literatura, na música… Há certo e errado?

Desconfio que não. Mas estou certo de que, na arte, há meios-tons. Ou deveria haver. Quando um crítico admira um filme, saberá facilmente defendê-lo. Há um sem-número de fórmulas e frases de efeito para justificar um elogio. Quando um crítico detesta um filme, o trabalho será mais automático ainda. Palavras como “pretensioso”, “desengonçado”, “desconjuntado” ou simplesmente “inepto” estão sempre à mão.

O difícil, percebo, é vencer os clichês da crítica e arriscar um diálogo mais direto, mais franco com o leitor. Garanto: ele tem perfeita condição de conversar com o autor da crítica (mas sim, também garanto que pouquíssimas pessoas leem críticas), de argumentar, de notar raciocínios maniqueístas, de perceber frases patéticas, de detectar dogmas vencidos e de, finalmente, cutucar o resenhista com um “mas deixe de ser radical, vá, não somos mais crianças”.

Voltando a Procedimento operacional padrão (e não a Quem quer ser um milionário?, que para mim já esgotou): ao sair do cinema, ouvi comentários sobre o longa-metragem que me pareceram mais sofisticados que a maior parte das resenhas que li sobre o filme. Enquanto muitos críticos reforçam a ladinha da “importância do tema”, ouvi espectadores reclamando do excesso de câmera lenta, dos truques e manias de uma encenação que busca a todo momento um apelo emotivo, uma atmosfera claustrofóbica, um tom enojado de narrativa, às vezes até uma queda pela chantagem sentimental.

Taí: o público do filme percebe muito claramente que Morris trabalha o tempo inteiro com elementos de ficção para reconstituir situações supostamente reais (que só podem ser comprovadas por fotografias), e que essa forma de filmar, simplesmente isso, renderia debates mais interessantes (eu não entendo, por exemplo, por que usar slow motion para filmar um ovo quebrando). 

Enfim: é só um traço do filme (há muitos outros). Outro dia li uma resenha de O casamento de Rachel quase toda sustentada numa comparação com Festa de família. Boa parte dos espectadores do filme de Jonathan Demme (um diretor tratado pelo crítico como… hmm, quase um asno) provavelmente pensou nessa comparação. Pensou nela e em outras. Pensou e construiu raciocínios mais elaborados. Enquanto isso, o crítico (pobrezinho) continuou lá atrás.

2 ou 3 parágrafos | O reino do amanhã

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O reino do amanhã (8/10) parece ter sido escrito para acompanhar uma sessão de O despertar dos mortos, de George A. Romero. No livro de J.G. Ballard, um monstruoso shopping center (chamado Metro-Centre) devora uma pequena cidade no subúrbio rico da Inglaterra. É o resort, o templo, o paraíso, a redoma de vidro onde os moradores de Brooklands oram e comungam diariamente – entre máquinas de lavar, canais de tevê a cabo, praias artificiais e ursos de pelúcia.

Do autor de Crash e Terroristas do milênio (ambos impressionantes, recomendo), eu não esperava um olhar menos demolidor para a humanidade. Como os zumbis de Romero, os figurantes da trama zanzam feito sonâmbulos em escadas rolante e praças de alimentação. O personagem principal é um publicitário que, como poucos, entende as engrenagens daquele refúgio de concreto e ar condicionado – não há marketing mais eficiente, ele sabe, que a crueldade associada a espetáculos esportivos.

O livro foi criticado por repetir procedimentos típicos da obra de Ballard: a distopia quase cega, o clímax megalomaníaco (novamente, o primeiro capítulo é lúcido; o último é doentio), a crítica feroz ao consumismo e uma queda pelo camp (em vários momentos, o discurso é pura auto-paródia). Mas existe uma novidade importante: o protagonista não é apenas vítima de um novo tipo de fascismo, mas atua (cinicamente) como um arquiteto do mal. É aí que Ballard elege os grandes alvos da vez: os intelectuais que, com boas ou más intenções, lançam lenha no inferno do ser humano. Como de costume (e como o Romero de Diário dos mortos), leva esse ataque às últimas consequências.