Dia: março 6, 2009
Entre os muros da escola
Entre les murs, 2008. De Laurent Cantet. Com François Bégaudeau, Nassim Amrabt, Laura Baquela e Juliette Demaille. 128min. 7.5/10
Reclamem do que quiser (e eu, pelo menos, tenho muito a reclamar), mas a lista de vencedores do Festival de Cannes de 2008 não peca por falta de coerência.
O júri liderado por Sean Penn escolheu rigorosamente filmes que espelham temas “importantes” e atuais (a máfia em Gomorra, a corrupção à europeia em Il divo) de preferência com realismo cortante, próximo ao docudrama (Linha de passe, O silêncio de Lorna). Nada mais justo, portanto, que premiar com a Palma de Ouro este Entre os muros da escola, um longa que resume o olhar dos jurados e da curadoria do festival.
O filme de Laurent Cantet poderia até ser tomado como uma espécie de símbolo para uma das principais (talvez a principal) tendências do cinema contemporâneo: a autoficção. A expressão de Jean-Claude Bernadet veste perfeitamente uma narrativa em que o protagonista, um professor de Francês, é interpretado pelo homem cujas experiêncais reais inspiraram a trama. Ator, testemunha, personagem e roteirista atendem pelo mesmo nome: François Bégaudeau.
Aos que tratam esse naturalismo radical como uma espécie de “última fronteira” do cinema, o filme parecerá uma obra-prima. Não é meu caso. Talvez eu esteja numa outra sintonia (provavelmente sim), mas fitas selecionadas para mostras paralelas de Cannes – e que colocam em xeque certos gêneros e modismos cinematográficos, como Aquele querido mês de agosto e Sonata de Tóquio – me parecem mais provocativas, sofisticadas etc. Mais novas, enfim.
Se compararmos aos filmes anteriores de Cantet (como A agenda e Recursos humanos, ou até com o desastrado Em direção ao sul), dá para notar que o diretor não abriu mão do discurso político – em prol das minorias, contra a exploração e mecanização do trabalho humano -, agora deslocado para o ambiente de um colégio da periferia de Paris. Mas a forma como o diretor transforma uma sala de aula num microcosmo da sociedade francesa (com tensões raciais, étnicas, culturais) beira o esquematismo.
Apesar do potencial para render temas para colunas de articulistas de cadernos culturais (quem vai ser o primeiro a analisar o papel dos personagens negros do filme, aparentemente integrados à classe mas, na prática, excluídos de um sistema que não os aceita verdadeiramente?). Esse “painel da França de hoje” não é o que mais me agrada no filme, talvez por parecer didático demais.
Um dos jurados de Cannes disse ter se impressionado pela forma como o longa parece ter sido “filmado ao vivo”. A narrativa opera quase sempre nessa chave – a da confusão entre uma suposta ideia de realidade e a pura ficção – e, de fato, os atores cumprem à perfeição a proposta realista do longa. Não há outro longa sobre vida escolar que se aproxime tanto das nossas experiências do dia-a-dia, das nossas lembranças de colégio, da observação direta de costumes. Nesse ponto, sai-se quase uma extensão do documentário Ser e ter, de Nicolas Philibert.
O filme quase integralmente (ou o que tem de melhor) é a encenação da atmosfera de uma sala de aula apinhada de adolescentes. São sequências longas, ruidosas, cheias de variações de humores, (que lembram alguns trechos de O segredo do grão e O casamento de Rachel) que transformam a classe ora numa praça de guerra (conflitos à flor da pele, provocações, crueldade entre alunos e professores, agonia teen), ora numa comédia leve. Sabemos da nobreza do trabalho de um professor. Mas Cantet nos lembra que ensinar é negociar, confrontar, lidar com preconceitos e traumas, administrar diferenças.
Que aluno nunca desejou vingar-se do professor? Que professor não desejou abandonar a turma como quem desiste de uma longa sessão de tortura? Está tudo aqui.
O filme lida com esses sentimentos contraditórios com naturalidade – isso até o momento em que a ficção entra em campo para organizar esse “retrato do cotidiano” e compor uma pequena trama de conspiração, com direito a rompante de violência e o equivalente a uma cena de julgamento. É quando a realidade dá o braço a torcer.
Uma das discussões do filme (há tantas!) diz respeito ao abismo de linguagem que separa professores de alunos. Numa das cenas, uma adolescente diz algo mais ou menos assim: “A linguagem que a gente usa é outra. A sua é antiga.” Lembrei imediatamente de A esquiva. Um filme que lida com essa diferença por um viés até lírico, sem a necessidade de explicitá-la. O tipo de política sutil que, pelo visto, anda em baixa no Festival de Cannes.