Dia: dezembro 17, 2008

Prospekt’s march | Coldplay

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coldplayA crise tá pegando, então vá por mim: o EP do Coldplay é o presente de Natal de que você não precisa. Quase um par de meias.

Chris Martin – nessa altura uma espécie de herói romântico do pop de estação FM – comentou que este CDzinho de oito faixas ajudaria o fã a compreender integralmente o conceito do álbum Viva la vida or Death and all his friends. Como se fosse complexo.

Por aí, nas lojas, está saindo a R$ 19.

É um assalto. Faça as contas: das oito faixas do compacto, três derivam diretamente de canções que já conhecemos. Life in technicolor II adiciona vocais (dispensáveis) à instrumental que abre o álbum, Lovers in Japan é um remix quase invisível e Lost+ vem com a inexplicável participação de Jay-Z, que obviamente presta homenagens a Biggie e Tupac.

E há uma que não chega aos trinta segundos de duração. Só nisso já descartamos metade do mimo de Martin.

O que nos sobra não é tão ordinário, ainda que não adicione novos elementos – nem tons, já que Martin adora usar metáforas de cores – ao disco produzido por Brian Eno. Glass of water adota a típica de hits como Yellow (versos dóceis, refrão cheio de guitarras) e Rainy day, mais interessante, brinca de eletrônica (com um refrão que emula Lou Reed). As acústicas Prospekt’s march/Poppyfields e Now my feet won’t touch the ground são sobras de estúdio. Lados B. Sensíveis, delicadas e tal, mas duvido que passariam pelo crivo de Brian Eno.

O perigoso de lançamentos assim, pobres de tudo, é que o público tende a atentar para detalhes que talvez passariam despercebidos em outra ocasião. Por exemplo: o preciosismo do Coldplay se encontra mais na embalagem das canções (a produção está longe de valer só R$ 1,99, e os títulos são sensacionais de tão emo) e do CD (o encarte é caprichado) que no processo de composição. De tão desarranjados, os versos de Life in technicolor II soam como fluxos de consciência. E essa fixação pela frase ‘agora meus pés não vão tocar o chão’, hem?

Se existe um conceito forte em Viva la vida, não será desta vez que ele virá à tona. Talvez seria melhor perguntar ao Brian Eno. Ou, como fazemos com o presente pouco memorável, guardar este par de meias no fundo do armário.

EP do Coldplay. Oito faixas, com produção de Markus Dravs, Brian Eno e Rik Simpson. Lançamento EMI. 3/10 

Lar doce obra

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Talvez vocês não saibam um detalhe sobre meu apartamento: ele fica num canteiro de obras.

E haja obra. A três quadras estão construindo um shopping center. Um terreno em formato de retângulo é perfurado, entortado e implodido diariamente por máquinas pesadas. Parece que montaram uma mini-cidade lá dentro só para abrigar os pedreiros. Sem brincadeira. É gente.

Aqui do lado, no terreno que dá para a janela da sala, começaram a erguer um prédio residencial. Minha paisagem matinal é um rastro de barro com marcas de trator. O som dos pássaros é abafado pelo zunido fino do metal contra as pedras. Ontem saí da garagem e quase bati o carro num caminhão de cimento. “Olha pra frente!”, reclamaram. Eu pedi desculpas. Percebo que, por aqui, o intruso sou eu.

 A rua estreita que dá acesso ao meu lar-doce-lar está enfeitada de faixas brancas e amarelas, que anunciam o imóvel “inacreditável”, “imperdível”, a “pechincha” da semana. Não são para o meu bolso. Nada é para o meu bolso. Com a crise financeira, então, perigo trocar meus rins por um jogo de toalhas de banho. Acontece que toda a minha vizinhança está à venda. Tenho a sensação de que habito um bairro que ainda não nasceu. A pré-história de um perímetro urbano.

Mas não estou me fazendo de vítima. Não. Não. Pelo contrário. Vocês não entenderam. Pode parecer incrível, uma tolice, mas estou achando é bom. Tudo aqui me agrada. Me sinto em casa. Acredito que nasci para isso – para viver num canteiro de obras.

Me integro ao ambiente com naturalidade: pela manhã, simplesmente não me incomodo com o barulho. Isso quando não percebo barulho algum. Ele não existe. É como se eu vivesse no meio do mato, ao lado de uma cachoeira, entre as montanhas, com as vacas e os cabritos. Um silêncio. Pensei até que essa sensação era coisa da minha imaginação – ‘a obra comendo tudo e você não ouve nada, Tiago?’ -, mas aí decidi enfiar minha cabeça no vão da janela e ainda assim necas. Uma paz. Os tratores mais aprazíveis do Distrito Federal.

Talvez seja um mecanismo de defesa do meu cérebro. Perdi a audição para obras. Perdi o mau humor para obras. As obras me afagam, sou amigo delas – é a vida se contorcendo, que delícia! E de imaginar que, nos últimos meses em que morei com minha família, eu acordava todos os dias às sete da manhã inconformado com um vizinho que derrubava paredes de madrugada. Era um inferno. É tudo psicológico, já dizia minha mãe. É tudo uma questão de referencial, já dizia meu professor de Física.

Deve ser. Referencial. Ao passar da condição de filho-da-mamãe para a de filho-sem-mamãe, algo bastante sério parece ter mudado na minha vida. E de uma forma tão veloz que ainda me assusta (e por isso eu talvez tente não pensar muito nisso).

Agora freqüento o supermercado semanalmente, troco lâmpadas, arrumo minha cama, levo o lixo para fora, lavo a louça, coordeno instalação de persianas, penduro a cortina do banheiro (que cai no chão logo em seguida – sou um desajeitado), faço meu café da manhã, compro meu suco de laranja e meu mate leão, pago as contas e só não reclamo do barulho do vizinho porque até agora ninguém pisou no meu calo. Mas inventem de pisar!

Apesar da soma de todas as atividades que nada tinham a ver com a minha rotina confortável, me sinto bem fazendo tudo isso. Como explicar? Hoje recebi a conta de luz com um sorrisão. ‘Como sou econômico!’, imaginei, todo orgulhoso. Bobagem? Isso se chama construção de identidade, meu amigo. A partir de hoje, eu, Tiago, sou oficialmente um sujeito econômico. Quem diz isso não sou eu, mas a Companhia Energética de Brasília (CEB).

Confiem nela.

O único problema que enfrentei até agora – e que diz muito respeito também sobre a minha identidade, o meu eu essencial ou seja lá que raios isso signifique – tem a ver com meu senso de decoração. Que é nulo. Isso foi uma decepção. Estou arrasado.

Até semana passada eu me considerava um homem de bom gosto, mais ou menos elegante, daqueles que nunca precisariam da ajuda constrangedora da equipe do Queer Eye for the Straight Guy. Mas aí entregaram a mesa da cozinha (branca, com estofado cinza), que não combinou nada com o sofá amarelo – que, por sua vez, destoou da poltrona marrom e da mesinha de madeira escura. 

Mas o estopim da minha revolta foi a maldita persiana. Quando tive que escolher a cor, não hesitei: disse cinza, e fez-se o cinza. Ontem pela manhã, meu apartamento acordou com a aparência de um consultório de dentista.

Caí numa crise braba e besta: por que me deixaram escolher a cor da persiana? Ninguém olha mais por mim neste mundo? Onde está minha mãe? Onde está minha professora do jardim de infância? Onde está a Anistia Internacional? Onde está deus nessas horas fundamentais da vida? Depois comecei a me acostumar com a minha falta de tato para organização de objetos coloridos. Sou um desastre. Mas também um sujeito econômico, enfim. Não sei o que conta mais, sinceramente. Acho que fiquei no empate.

É que, por aqui, as coisas caminham numa sucessão de tentativas. Muitas delas equivocadas. Estou aprendendo comigo mesmo, e isso é lindo e terrível. Outro dia comprei lâmpadas (e quem compra lâmpadas sabe o quanto elas são caras) só para perceber que não era exatamente o produto que eu procurava. Tive que trocar a cortina do banheiro, já que não cabia no espaço do chuveiro. Essas e outras gafes que acompanham um novato no mundo dos habitantes de apês de um quarto – essa estranha fauna de pessoas que saem muito cedo e chegam muito tarde.

Daí que não me incomodo com as obras. Não mais. Contanto que continuem construindo, estarei bem. Não ficarei só. Já que eu mesmo, um tanto tosco, um homem sem acabamento, ainda não me sinto nada pronto.