Dia: dezembro 9, 2008

Chinese democracy | Guns N’ Roses

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gunsQuem você era em 1994?

Eu era um estranho. Lembro bem. Eu, aos 15 anos de idade, me camuflava nos corredores do colégio. Aposto que alguém me confundiria com uma mochila. Um novato assombrado pela multidão anônima de uma típica escola secundária. Na lista de chamada, meu número era quase sempre o 50. No fim. Depois dos pedros e dos ricardos e dos rodrigos. Tiago, presente!, e então o vazio. 

Eu, um leonino envergonhado, não queria ser tão reconhecido. Quer dizer: em 1995 eu já escrevia gracinhas no quadro-negro durante o recreio; em 1996 eu liderava uma equipe de nerds numa maratona de gramática. Mas em 1994, o ano da mudança, eu não era ninguém. Eu ainda não entendia como uma escola daquelas conseguia instruir nada menos que 500 alunos – numa mesma série! Como identificar tanta gente? E se alguém sofrer uma parada cardíaca no banheio? Éramos pregos minúsculos numa estante de madeira.

(Um ano antes, eu habitava um simpático e pequeno colégio com aulas de teatro, feira de literatura e professoras de Português que pareciam ter certeza absoluta de que formavam pequenos gênios da arte, ó tolas).

O resumo da ópera é que, se um ser azulado de conto de fadas brotasse no tapete da sala, eu não pediria para retornar a 1994. Talvez a 1995. Definitivamente a 1993, o melhor ano da minha vida. Mas 1994 não. Foi um ano tão complicado, tão errado e talvez amaldiçoado que Axl Rose só poderia ter começado a pensar em Chinese democracy naquele exato período. Deu no que deu.

Pelo menos, ao contrário de Axl, eu não mantive nenhuma dívida com aquele ano infernal. Superei os traumas de 1994 com alguma facilidade. Ou imagino tê-los superado. Pelo menos, de alguma forma, cresci. Hoje olho para trás e acho graça. Vejo um adolescente. Uma outra pessoa.

Nada daquela época me interessa. Talvez apenas as músicas que eu ouvia com rigor doentio. The Breeders, Nirvana, Pavement e Smashing Pumpkins. Já não ouço Smashing Pumpkins há uns cinco anos. 

Não sei se vocês lembram mas, na época, Guns N’ Roses era passado. Quem cantarolasse November rain na sala de aula seria condenado a três meses de isolamento no recreio. Eu não teria a coragem.

E Axl Rose (antes que eu me perca completamente deste texto sobre Chinese democracy), quem ele era em 1994? Imagino um astro de rock aprisionado num ano ruim. O vocalista do Guns N’ Roses tentou reunir a banda para compor as primeiras canções do disco que seguiria o duplo Use your illusion, de 1991. Foi tempo perdido. Imagino o tipo de frustração de quem descobre que não consegue assumir um antigo papel, nem se adaptar a um outro tempo.

A solução encontrada por Axl para desviar do fantasma da decadência não foi se transformar num ídolo emporcalhado do nü metal, mas congelar o relógio. Um esforço que, pensem com carinho, é digno da melhor ficção-científica. Se os anos 1990 não aceitariam um Chinese democracy, que tal lança-lo uma década depois?

Claro que as coisas não funcionaram assim. A história da gravação do álbum, sabemos, foi emperrada por ataques de ego, brigas com produtores, demissões em massa, duetos com Sebastian Bach, a prisão de um blogueiro, a queda da indústria fonográfica e o ataque às Torres Gêmeas. Axl sobreviveu à tudo, a todos os desastres e imprevistos, para cumprir a missão de trazer o ano de 1994 de volta.

E trouxe. Que medo. Chinese democracy – o álbum, a lenda, a piada pronta – é uma continuação tão direta de Use your illusion que dá calafrios. Se descontarmos os truques de produção e mixagem, o disco confirma a impressão que tínhamos há uns dez anos de que, se Axl voltasse, seria por um caminho mezzo-rock industrial (à Nine Inch Nails), mezzo-hard rock oitentista (à Appetite for destruction). E não é que ele nos fez esperar uma eternidade por isso?

Não me preguntem como, mas esse disquinho ultrapassado – e, queiram ou não, bastante coerente com a trajetória da banda – periga fazer um tipo de sucesso que seria impossível em meados dos 90. A tática zen-budista de Axl: pule uma geração. Quem sabe os meninos e meninas fãs de Fall Out Boy não entendam verdadeiramente a fúria juvenil dessas canções?

É que Axl, apesar da barriguinha, do alto dos 46 anos de idade, não cresceu.  Ele ainda compõe hinos indignados contra qualquer coisa e canções de amor desesperadíssimas para musas que nunca vão existir de verdade. Chinese democracy é um álbum de rock teen e por isso deve estourar nas rádios. Imagino os fãs de Jonas Brothers cantarolando Better, por exemplo. “Ninguém nunca me avisou que eu estava sozinho, eles pensavam que eu me viraria”, lamenta Axl.

Pobre Axl. “Não vou me prostituir por fama e vergonha”, ele avisa, em Prostitute. Nem Billy Corgan se sujeitaria hoje a esse tipo de constrangimento em público.  “Não tente me parar agora. Eu me recuso”, o tio ameaça, em Scraped. E Trent Reznor cai em gargalhadas.

O álbum parece até muito simples, muito agradável, muito fácil, quase um greatest hits ambulante (e a voz do moço renasce tinindo sob verniz de pro-tools), mas é a obra conceitualmente mais bizarra que ouvi em minha vida.  Não conheço outra igual. Não sei de um disco que tente expurgar uma obsessão desse tamanho. O Portishead demorou dez anos para lançar um novo álbum, mas gastou o período para viver a vida. Axl Rose viveu Chinese democracy durante dez anos. Vocês sabem o que isso significa?

Eu não sei. A experiência de ouvir este disco na versão integral – com as lembranças de 1994 dentro do pacote de canções – é um tormento. O que motivou Axl Rose a carregar esse fardo durante uma eternidade me parece tão inexplicável como o ar de juventude que o álbum carrega. Mais estranho ainda: uma adolescência que não é forçada, não é calculada, soa mais como um complexo que como estratégia de marketing. Mais para Michael Jackson que para Madonna.

A banda de rock que mora na cabeça de Axl Rose continua – por incrível que pareça – na flor da idade. E o curioso é que o mundo está novamente pronto para recebê-la. Quem mandou mexer com 1994? Taí o freak show.

Sexto álbum do Guns N’ Roses. 14 faixas, com produção de Axl Rose e Caram Costanzo. Geffen. 6/10