Dia: novembro 11, 2008
R.E.M. em São Paulo
Este não foi o melhor show do ano: foi um dos shows da minha vida.
Por isso mesmo, vamos com calma. Que ninguém espere deste post um relato minimamente distanciado da apresentação do R.E.M. na Via Funchal, em São Paulo, na noite de segunda-feira. Não dá. Foi um daqueles espetáculos impecáveis que conto nos dedos da minha mão direita.
Mas vocês deveriam acreditar um pouco em mim. Pelo menos um pouquinho. Este talvez seja o melhor exemplo de uma banda com muitos anos de estrada que nega a auto-indulgência dos desfiles de hits. Que imprime novos conceitos a antigos sucessos. Não é detalhe. O Jesus & Mary Chain poderia aprender com eles: o R.E.M. fez um show pulsante, contemporâneo, carregado de urgência – o espelho de ídolos que olham para o passado, mas fazem questão de habitar o tempo presente.
Note as imagens do telão, uma sobreposição de flashes fora de sintonia (e uma aula para Kanye West). Elas dão o clima da apresentação: mescla letras de música e videoclipes, cenas da platéia e slogans a favor de Obama. É um caos visual, frenético, que chega a lembrar a idéia que havia por trás da turnê Zoo TV, do U2. ‘São centenas de canais de tevê, mas nenhum que gostariamos de ver’, dizia Bono. Mas Michael Stipe fala de um “novo mundo”, canta sobre pessoas que “não se importam” (no hit mignon Supernatural superserious) e lança o desafio: “nossos shows são reflexos de nossas opiniões políticas. Escolhemos estas músicas de acordo com o que estamos sentindo no momento.”
Aposto que foram poucos os fãs que tentaram decifrar as conexões entre Drive, Losing my religion, Everybody hurts, Imitation of life e Barack Obama. Eu estava perdido nas minhas memórias de adolescente, e num determinado momento parecia até que aquele show tinha sido planejado para a minha geração, que acompanhou o R.E.M. a partir de Out of time. Foram nada menos que cinco faixas de Automatic for the people (entre elas, a obra-prima Sweetness follows) e três de Monster (Let me in, escrita em homenagem a Kurt Cobain, ganhou uma surpreendente versão acústica). O que eles querem com isso?
Talvez nada muito complicado. Ao vivo, o R.E.M. é um animal em extinção: uma banda madura o suficiente para interpretar e modelar o próprio repertório por caminhos nada previsíveis (mesmo quando tocam as músicas que todos querem ouvir). Quem imaginaria que as canções de Accelerate, quase anêmicas, combinariam tão bem com as de Automatic for the people? E que as de Monster, como I took your name, parecem extremamente sofisticadas perto das novas faixas? Eu não tinha pensado no assunto.
Se o R.E.M. é um dinossauro do pop (e não no mau sentido: é que hoje simplesmente não há habitat para bandas tão grandes), como fica Michael Stipe? Taí um vocalista completo, quase ultrapassado (até no discurso político, em desuso), um mestre de cerimônias que toma as rédeas do espetáculo sem se deixar vencer por ele – ele dialoga constantemente com o público, brinca com a pose de superstar, tem consciência absoluta da dimensão do próprio ofício (que Kaiser Chiefs tome anotações).
Desde New adventures in Hi-fi, não há um único álbum do R.E.M. capaz de ilustrar o imenso potencial criativo da banda ou o gênio de Michael Stipe. No palco, tudo passa a fazer sentido. O grande momento do show, o que sintetiza o trio, é Man on the moon: versos maravilhosamente literários e lotados de referências pop e políticas (que citam Elvis Presley e Andy Kaufman) cantarolados com facilidade por uma multidão. Se não estivessemos tão saturados de Losing my religion e It’s the end of the world (as we know it), notaríamos nessas músicas essa mesma qualidade: mesmo nos momentos mais acessíveis, o R.E.M. nunca cobrou barato do público (e não falo dos R$ 200 cobrados pela produção do evento), nunca se fez de bobo.
Juntas, as 25 canções do set list também sublinham o gosto da banda pelos momentos mais emotivos, delicados, com melodias que estão à altura do lado cerebral das composições (e essa batalha o R.E.M. trava desde o primeiro disco): Everybody hurts, uma das letras mais simples deles, é também a mais devastadora. O impacto de Drive se mede pelo acúmulo de versos que se repetem feito um mantra. E The one I love chega a destoar do conjunto verborrágico de Document, um álbum que, apesar de tão político, foi pouco lembrado no show (e não teve nada de Around the sun, felizmente).
Sem o neon da turnê de Up, o R.E.M. de Accelerate é preto no branco: uma banda lúcida, perene e relevante num mundo pop que devora a si mesmo a cada frame (atenção ao telão!). De um monumento, impossível cobrar mais que isso.
PS: Tudo isso para tentar convencê-los de que não caí no choro em What’s the frequency, Kenneth? à toa, ok?