Dia: outubro 15, 2008
Diário de SP | No metrô
1 | Atenção. Não segure as portas. Setenta por cento dos atrasos do metrô são provocados por pessoas que seguram as portas.
2 | O metrô de São Paulo às vezes dá nos nervos, não?
3 | Atenção. Não segure as portas. Setenta por cento dos atrasos do metrô são provocados por pessoas que seguram as portas.
4 | Mas aí ele pára na Estação da Luz e…
…a cidade muda. Dá gosto. O paraíso é aqui. Para este forasteiro, o melhor de São Paulo está nesta foto borrada de telefone celular. Na estação de trem, que me lembra das cinematográficas viagens que eu fazia quando pequeno, no vagão-leito, com pai e mãe, saindo da Central do Brasil. E no contraste entre essa catedral e aqueles prédios mais decadentes, que desabam no fundo da paisagem.
5 | Atenção. Não segure as portas. Setenta por cento dos atrasos do metrô são provocados por pessoas que seguram as portas.
6 | Mas a síntese perfeita da cidade está sob a terra, nos corredores largos do metrô. A cidade treme. Um passo menor que o outro. Para me convencer de que eu estou de férias, experimentei parar diante de uma pilastra e perder o trem. É. Perder o trem. Taí uma ousadia que nenhum paulistano perdoaria. Eu seria excluído do sistema de venda de bilhetes – para sempre, sem retorno, sem perdão. O trem passou e eu fiquei lá, estático, pensando na vida, no leite derramado, nos grilos do quintal, nos galos que cacarejam no prédio ao lado (onde será que eles ficam, na cobertura?).
7 | – alô, quem fala? – é o tiago – ai, desculpa, liguei pro quarto errado.
8 | Atenção. Não segure as portas. Setenta por cento dos atrasos do metrô são provocados por pessoas que seguram as portas.
9 | No Museu da Língua Portuguesa, dois meninos skatistas de cabelos verdes e correntes e botas assistiam à exposição sobre Machado de Assis. Nos filmes de Gus Van Sant, chamariam essa imagem de licença poética.
10 | Por que toda homenagem a Machado de Assis tem que ser forçadamente bem-humorada?
11 | “A obra em si mesma é tudo: se te agradar, fino leitor, pago-me da tarefa; se te não agradar, pago-te com um piparote e adeus” (mas abrir a mostra com esse trecho de Memórias póstumas de Brás Cubas é um achado – meio óbvio, mas um achado).
12 | Vi o meu primeiro filme da Mostra de SP. Que é…
Mil anos de orações | Wayne Wang | *
Um filmezinho singelo sobre um simpáico velhinho chinês de férias num daqueles bairros-maquete dos Estados Unidos. As estruturas das casas são tão frágeis quanto a do longa-metragem, um conto de contrastes culturais e conflitos familiares que já vimos, já conhecemos e que investe numa narrativa adoravelzinha, simplezinha, quase anêmica. “Estados Unidos é igual a água fria”, filosofa nosso querido ancião. “Machuca o estômago”, conclui. E é o máximo que consegue Wang, muito adaptado aos humores do governo chinês, em matéria de comentário social.
13 | Atenção. Não segure as portas. Setenta por cento dos atrasos do metrô são provocados por pessoas que seguram as portas.
14 | Mas comparado a As duas faces da lei, trata-se de uma pérola do cinema oriental. O filme-evento promovido por Robert de Niro e Al Pacino nem merece uma foto – é um thriller tão ordinário e tosco quanto aquelas pequeninas academias de ginástica da Rua Augusta. É um espetáculo tão macho e descerebrado que, se pudesse, arrotaria e coçaria os bagos de cinco em cinco minutos. Imagino o que Antônio Abujamra, que assistiu ao filme na mesma sessão, teria a dizer sobre a bagaceira. Deixa um comentário aí, Abu!
15 | No dia mais quente do ano, a bolsa não pára de cair e o Festival de Brasília me apareceu com uma escalação mal-assombrada, de tirar o sono. Só espero que o PCC não se manifeste.
16 | Atenção. Não segure as portas. Setenta por cento dos atrasos do metrô são provocados por pessoas que seguram as portas.
17 | Sinto saudades da minha namorada – mas talvez a recíproca não seja verdadeira.
18 | “Minha mãe me parecia horrendamente conformista e irrecuperavelmente obcecada com o dinheiro e as aparências; meu pai me parecia alérgico a qualquer tipo de diversão. Eu não queria as mesmas coisas que eles. Eu não dava valor ao que eles valorizavam. E estávamos todos igualmente infelizes naquele carrossel, e éramos todos igualmente incapazes de explicar o que acontecera conosco” (A zona do desconforto, Jonathan Franzen, página 35).
19 | E aqui, por hoje, seguro a porta.
Diário de SP | Um dia, um encosto
1 | Aconteceu, meus amigos. Dois dias em São Paulo e tropecei nos dois seres mais exóticos (talvez bizarros, mas não sejamos politicamente incorretos) da cidade.
Meet Tony, um personagem que você não encontra em seriados da HBO (para preservar a identidade dessa turma e evitar um processo por danos morais, todos os nomes desta crônica doentia são fictícios, exceto o meu). Tony, um quarentão rechonchudo que poderia ter interpretado Truman Capote no lugar de Philip Seymour Hoffman. Tony, um homem muito simpático, de agudos mui extravagantes, que caminha por São Paulo amparado por uma muleta de madeira. Tony, em busca de novas amizades.
Meet Hilda, uma personagem que você talvez encontre em um episódio de Weeds. Aérea, deslocada no tempo e no espaço, Hilda faz movimentos vagarosos com a cabeça como quem vive uma cena em slow motion. Hilda, a mulher que deixa sentenças pela metade à espera de uma boa alma que as completem enquanto caminha por São Paulo amparada pelo amigo Tony. Hilda, em marcha lenta.
Meet Tiago Superoito, o forasteiro.
Era fim de tarde. A terça-feira ainda fervia em 32 graus. Depois de bater perna pela cidade em um dia dedicado a exposições de arte (duas delas inexistentes, mas errar é humano) e excessos gastronômicos, eu, Tiago Superoito, decidi me esconder do mundo abraçado pela névoa fria de uma sala de cinema. Comprei um ingresso para Acidente, exibido no Cinesesc. Sentei-me na poltrona azul do hall, tirei a edição especial da Piaui da mochila e, faltando quinze minutos para o início da sessão, comecei a lê-la. A paz…
… não durou muito tempo, entretanto.
Como o vulto apressado de um Teletubbie obeso, Tony quicou no foyer do cinema e, em não menos que dez segundos, a muleta de madeira quase perfurou minha coxa.
– Posso sentar aqui?, ele perguntou, e era o caso óbvio em que não havia como dizer não. A sala de espera estava completamente vazia, mas, sabe-se lá por que razão, ele queria a poltrona exatamente ao meu lado.
A especialidade de Tony, eu descobriria mais tarde, é provocar situações constrangedoras que evocam um misto de tentativa-de-forçar-amizade com falta-absoluta-de-noção. E nos deixam sem respostas.
– Pode, claro, a poltrona tá vazia, eu disse, e continuei a ler a minha revista com a formalidade, a educação distanciada e a frieza que uma cidade grande exige. Cada um no seu quadrado, já dizia o refrão.
– Você sabe qual é a sinopse do filme?, ele perguntou. Eu estava prestes a pedir que ele levantasse a bunda branca da poltrona e lesse o papel afixado no mural próximo à bilheteria. Mas observei a muleta de madeira, pensei na minha disposição para fazer novas amizades e preferi um tom mais amigável que combina com a minha origem. Sou carioca e cariocas, por definição, puxam papo.
– É sobre vinte cidadezinhas de Minas Gerais. Os nomes das cidades formam um poema e o filme é sobre a criação desse poema. Entende?
Talvez eu tenha sido atencioso demais, já que a simples descrição da premissa do filme fez com que Tony passasse a me tratar como um melhor amigo. Ou, mais perigosamente, como alguém ainda mais próximo que um melhor amigo.
– Nossa, que história mais criativa, intrigante, ele exclamou, e a palavra ‘intrigante’ pronunciada com aquela voz finíssima poderia estar num filme sobre a era vitoriana.
– É.
– Quem é o diretor, hein?
– É o Cao Guimarães.
– Ah, sim, sim, sim (foram cinco ou seis ‘sim’), conheço. Ele às vezes acerta e às vezes é subjetivo demais, demais, demais.
A amiga Hilda, que finalmente acordou do sono profundo e passou a participar da conversa, perguntou ‘mas o que é ser subjetivo, Tony?’
– Essa é a Hilda. Ela é uma antiga amiga. Somos artistas plásticos. Qual é o seu nome mesmo?
(Longa pausa em que eu, Tiago Superoito, pensei se deveria dizer Jonas ou Bruno. A muleta continuava a apertar minha coxa)
– É Tiago.
Pularei o longo interrogatório que seguiu minha resposta. De onde você vem? O que você faz? Mas parece tão novo! Onde trabalha? Um jornal respeitado! Toma aqui meu cartão, será que rende reportagem? Por que está em São Paulo? Mas a mostra não começa só sexta-feira? Ah, claro, sim, oh, você é tão precavido.
Hilda participava dos assuntos com acenos de cabeça. Do questionário, Tony passou a um tipo mais íntimo de conversa. O tempo que levamos para chegar até lá? Uns cinco minutos.
– No meu cartão, aqui embaixo, tem meu telefone. Nós vamos sair depois do filme.
– Não! – eu reagi, mas depois imaginei que eu poderia ser rotulado de grosseiro e optei por uma negativa mais amena – Tenho compromisso.
– E amanhã?
– Outro compromisso.
– E depois?
– Compromisso todo dia.
Abri a revista como quem hasteia uma bandeira branca. Ele continuou com a guerra.
– Você tá sozinho? Num hotel?
– Não. Na casa de amigos.
– Hilda, Hilda, ele não é tão tranqüilo?, e aí já comecei a suspeitar que a dupla atraía viajantes incautos para um porão na Bela Cintra, onde os submetiam a infilmáveis sessões de tortura. Também lembrei de contos de fadas macabros do estilo João e Maria.
– Sou. Tranqüilo. Muito tranqüilo. A sessão tá pra começar.
– Eu e a Hilda andamos juntos toda hora. É tanto que as pessoas pensam que somos casados. Mas nós não somos casados não, viu?
– Claro.
– Tiago, olha: eu sou sagitariano e a Hilda é de Áries. Qual é o seu signo?
– Leão.
– Hmm. Leoninos são tão enigmáticos. São sempre uma surpresa.
– Não acredito nessas coisas – e voltei à revista.
Fiquei imaginando por que raios o tiozinho havia me tirado para presa. Está certo que um sujeito que passa a terça-feira em exposições de arte, almoça no restaurante do Masp e aguarda o início de um filme de Cao Guimarães lendo a Piaui envergonha o mundo hétero, mas nenhum desses detalhes deveria significar que eu estaria louco para cair no colo de um macho. Depois de adiar a intervenção cirúrgica, finalmente apelei quando ele pediu novamente, assim, na cara dura, com consentimento da Hilda, para sair comigo:
– Minha namorada tá chegando. Ela vem logo, daqui a uns dias. (eu não estava mentindo, mas sublinhei a palavra namorada).
– Mas e hoje à noite?
Foi quando, a dois minutos para o início do filme, levantei-me, apertei a mão do meu amigo atirado, acenei para Hilda e avisei que estava na hora, o filme ia comecar, até mais, prazer em conhecer, vou levar o cartão pra Brasília e entregar para a repórter que cobre artes plásticas, quem sabe, vai que ela emplaca alguma coisa. Tchau, boa sorte.
– Liga, tá?, ele ainda tentou, escorregadio feito uma enguia.
Vi o filme na terceira fila, atento a qualquer barulho suspeito. No fim da sessão, como eu me portaria? Pensei em me esconder sob as poltronas do cinema, mas seria ridículo. Pensei em abandonar a sessão pela metade, mas o filme não era ruim. Pensei em pedir socorro, mas Tony e Hilda eram serial killers frágeis demais para despertar alguma aflição. Pensei em um ataque ríspido, mas me acusariam de homofobia e, naquele ambiente, eu provavelmente sairia perdendo. Assim que os letreiros finais subiram na tela, agarrei minha mochila e disparei na velocidade da luz.
Sobrevivi, mas não retorno ao Cinesesc antes da mostra.
2 | Antes dessa sessão acidentada, vi Caos calmo, um filme italiano com Nanni Moretti que aparenta ser um prolongamento de O quarto do filho (desta vez o protagonista perde a mulher repentinamente), mas provoca o efeito contrário. Em vez da simplicidade comovente, o que temos é uma aparência de simplicidade arrancada a fórceps. O diretor Antonio Grimaldi é um assombro, desajeitado em quase tudo – as inserções truncadas de música pop na trama (Rufus Wainwright, Radiohead) sintetizam os problemas do filme.
3 | Pela manhã tentei ir a uma exposição no Ibirapuera. Tentei, já que a exposição não existia. Passei trinta minutos andando na pista, entre ciclistas, patinadores e alunos de escolas públicas. Num delírio meu, uma daquelas criancinhas me perguntava: ‘tio, o que você está fazendo aqui?’.
4 | Pela janela do meu quarto ouço cães latindo e galos cacarejando. Me sinto em casa.