Dia: outubro 10, 2008
Caixas
Passei o dia arrumando minha vida em caixas. Estou de mudança.
Conheço bem esse processo de juntar as tralhas, organizar a bagunça, lacrar as embalagens de papelão, esvaziar o quarto. Não sei se vocês se importam com o ritual, mas para mim sempre foi um momento intenso. Sou dos que encontram uma foto perdida, um livro preferido, uma fita cassete com um programa de rádio que gravou aos cinco anos de idade, uma carta de amor com vírgulas nos lugares mais errados. Essas coisas. Lembranças.
Talvez minha resistência a trocar de casa venha daí. Do medo de voltar a esse momento de encaixotar meu quarto. E de saber que, na poeira, vou encontrar algo surpreendentemente estranho.
Mas hoje foi diferente. Não encontrei nada.
Verdade. Foi como se eu estivesse esvaziando a vida de uma outra pessoa. Ou mais impessoal que isso. Como se eu trabalhasse no estoque da Wal-Mart, de luvas e macacão branco. Ou no Makro, em meio àquela pilha de enlatados. Eu e as caixas. Só rotina, movimentos repetitivos, sem sentimentos fortes no pacote.
Encontrei até uma foto antiga. Eu vestido de Rambo, aos oito. Com faixa vermelha na testa e camiseta preta, calça camulflada. O olhar mais triste do mundo – não me comoveu. Não sinto saudades. Não quero voltar para lá.
Olhei para meu quarto depenado e parecia uma instalação. A bienal do vazio. Paredes brancas, estantes desenhadas como um jogo de dominó. Posso ir embora?
E essa sensação me explica que chegou a hora. Estou de mudança.
Sticky and sweet
Meu padrasto comprou um telefone celular novo. Dos modernos. Tão multifunções que, há três noites, ele leva o objeto para a mesa de jantar e, de óculos, seríssimo, tenta um contato imediato.
Agorinha mesmo ele se esforçava para escolher o toque de chamadas. Zilhões de opções. Uma loucura. Testou a campainha retrô (que me lembra novelas de época), não gostou. Chegou perto de se interessar pelo ruído à máquina de pinball. Mas acabou emburrado. Zapeou pelo tecnopop meio Information Society, que disparou num volume altíssimo. Fez cara feia. Mordeu um caju. Ajeitou o óculos. E aí esbarrou no refrão:
– You always love me more, miles aw –
(bruscamente interrompido)
– Credo.
E taí: a primeira vez que meu padastro, o único brasileiro que não faz a mínima idéia do que seja The sticky and sweet tour, ouviu com alguma atenção um hit da Madonna. E foi como se nada, nada tivesse acontecido.