Dia: setembro 14, 2008

O tempo, o vento e o cinema

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Com atraso imperdoável, finalmente fui apresentado a Apichatpong Weerasethakul. Reparem o estrago que o tailandês provocou nas minhas listas de melhores.

Três dos quatro longas-metragens do cineasta passaram na salinha simpática do CCBB aqui de Brasília, na mostra Oriente desconhecido (que só não pode ser chamada de insuperável por dois motivos simplezinhos: faltou o fundamental Misterioso objeto ao meio-dia; e esta terça começa a do Resnais). Mal dos trópicos e Síndromes e um século, ambos pela primeira vez na cidade, foram exibidos em película-graças-a-deus.

Quatro filmes, quatro obras-primas. Sinceramente, eu não estava tão preparado para isso.

Aposto que não fui o único a sair das sessões com a carteirinha do fã-clube. “É o filme mais esquisito que vi na minha vida”, houve quem notasse, abismado com a longa caminhada matagal adentro em Eternamente sua. E não há dinheiro que pague a sensação de acompanhar os ruídos assustados da platéia quando os créditos iniciais do filme irrompem na tela aos 45 minutos de projeção. O início da segunda parte de Mal dos trópicos provocou igual espanto. “Pra onde esse maluco tá nos levando?”, perguntou um sujeito da poltrona à minha frente.

É a pergunta de um milhão de dólares.

Firulas à parte, é um cinema destemido. Que convida o público a adentrar a floresta – não são poucos os que saem de lá estranhamente transformados. Dos quatro (o primeiro dele assisti em DVD), Eternamente sua é o mais suave e mais brutal. Como o diretor consegue encontrar estranheza na aparente simplicidade? Pergunte a outro. O longa persegue um casal de namorados numa tarde de fuga. E é isso. “Sei que você se preocupou demais no trabalho. Por isso pensei em dar uma escapada”, avisa o protagonista. As questões políticas que envolvem esse desligamento da realidade são muitas, e o diretor deixa que elas pulsem fora do quadro. Lá dentro, apenas o retrato de alguns instantes de prazer.

E Mal dos trópicos me parece a maior dessas obras-primas. Um filme que vale pela melhor melodia de Brian Eno. 

Cada longa renderia um texto demorado, então prefiro não cair no erro de simplificar a história toda. Na verdade, desculpem-me aí, ainda não dou conta de abraçar esses filmes.

Numa entrevista, o diretor comenta o desejo de estimular a criação de filmes verdadeiramente independentes num país cujo cinema é controlado por poucos grupos, que detêm o circuito exibidor. Talvez esse contexto ajude a explicar por que o cinema de Apichatpong pareça tão disposto a negar certas convenções (são narrativas descalibradas de propósito) e se deixar influenciar por outras expressões artísticas. À primeira vista, parece um cineasta movido por interesses radicalmente pessoais. Mas aí você assiste a Misterioso objeto ao meio-dia, um documentário de ficção (ou vice-versa) construído com idéias de pessoas comuns, e nota que este é um cinema em constante processo de cooperação, de improvisação. Um cinema que ouve, sente e experimenta o mundo. Que sai para a aventura.

“É transcendental”, ouvi dizerem, ao fim de Síndromes e um século. E também, no fundo, muito simples. O que há de tão exótico no sol vigilante que ilumina o casal de amantes em Eternamente sua ou o vento que balança as árvores em Mal dos trópicos? Os mistérios desses filmes de amor também estão aqui dentro, em nossas vidas.

Ensaio sobre o nevoeiro

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“Está visto que aqui já ninguém se pode salvar. A cegueira também é isto, viver num mundo onde se tenha acabado a esperança.”

José Saramago, em Ensaio sobre a cegueira. Que renderia uma bela epígrafe pra O nevoeiro.