Dia: setembro 13, 2008

Meu segredo é que sou rapaz esforçado

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Vi ontem o show do Jards Macalé e foi lindo. Quase ninguém no teatro, mas foi o máximo. Aliás, um constrangimento. Quase ninguém no teatro. Umas dez pessoas. Mas, tirando isso, foi um negócio.

Ele fez uma paródia do Gilberto Gil, imitou o João Gilberto e exigiu que parem de chamar o Galeão de Aeroporto Internacional Tom Jobim (já que, e fica muito engraçado quando ele conta, cada vôo atrasado difama o nome do sujeito).

Aí vim pra casa e ouvi uma fita-cassete que eu gravei quando eu tinha 16 pra 17 anos de idade. Uma tristeza infernal. Mas, no meio do repertório sofrível, encontrei uma musiquinha bonita meio Elliott Smith meio Mallu Magalhães chamada Se você voltar. Não é que, se eu tivesse me dedicado à arte um pouco mais, talvez eu tivesse virado um ídolo indie (mas na época não havia MySpace, daí que dificultava tudo)?

Antes do Macalé vi o Ensaio sobre a cegueira. E fiquei pensando com os botões que não uso: que preguiça de escrever uns muitos parágrafos pra um daqueles textos enfadonhos com foto retangular no topo! E aí pensei no monte de compromissos que tenho e que não interessam a quase ninguém. E que daqui a uns dias entro de férias e ainda estou que nem a heroína daquele filme do Rohmer, feito estátua diante de uma pista larga de areia sem saber pra onde ir.

Como diria o poeta, meu segredo é que 

Ensaio sobre a cegueira

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Blindness, 2008. De Fernando Meirelles. Com Julianne Moore, Mark Ruffalo, Alice Braga e Danny Glover. 125min. **

Cinco minutos antes de entrar na sala de cinema para assistir a esta adaptação de Ensaio sobre a cegueira, fechei o livro de José Saramago na página 172. Ou seja: eu ainda estava na metade da história, mais ou menos no momento em que os cegos malvados submetem as mulheres infectadas a uma sessão grotesca de tortura sexual.

Até então, o único cineasta que eu imaginaria ser capaz de filmar esse conflito dantesco, essa alegoria escatológica para o fim dos tempos era Pier Paolo Pasolini. Só ele. E à época de Saló.

Mas aí entrei no cinema e tudo que consegui ver foi um filme de Fernando Meirelles. Às vezes, nem isso.

Abro os jornais e está quase sempre lá: se discute o grau de fidelidade com que o diretor de Cidade de Deus traduziu o livro para as telas. As situações foram todas mantidas? Os detalhes mais violentos, preservados? Os personagens continuam mesmo sem nome? E os estupros coletivos, acabaram abandonados na sala de edição? O desfecho foi alterado? O manicômio ainda tem a aparência de um campo de concentração?

Respeito o interesse, mas confesso: não há debate que me entedie mais.

Sim, já que uma adaptação literária sempre será, no máximo, uma adaptação literária. Não é um joguinho tolo de palavras. Um filme inspirado num livro será (e me sinto meio idiota escrevendo isso, já que me parece tão óbvio) apenas uma interpretação para a obra. Nada além disso. A menos que você espere de um filme a simples narração de uma história.

Quer uma prova de como são mundos totalmente diferentes? O Ensaio sobre a cegueira de Meirelles é bastante fiel aos eventos narrados no Ensaio sobre a cegueira de Saramago. Os primeiros capítulos, em que um grupo de anônimos se descobre vítima do “mal branco”, são compilados na velocidade de um teaser. Mas está tudo lá. A narrativa abre com um sinal de trânsito, tal como o livro. Quando o primeiro homem cega, um pedestre avisa que pode ser problema “dos nervos”. São as palavras de Saramago.

Mas, ainda comparando maçãs com tomates, toda a atmosfera de desespero, de desamparo, de angústia que paira sobre o livro acaba minimizada pelo filme. Por que isso acontece? Difícil explicar. Talvez tenha a ver com o fato de que a literatura permite que acreditemos piamente num pesadelo como esse (da forma tensa como sofremos com nossos sonhos). E que as imagens o banalize, reduza seu impacto -para piorar, teremos como referência uma série de outros filmes apocalípticos, como Extermínio ou Filhos da esperança.

Pode ser. Mas digo isso apenas para ilustrar o perigo desse tipo de paralelo entre uma obra e outra. O filme de Meirelles poderia (ou melhor, deveria) andar com as próprias pernas. Não é cobrar muito.

Mesmo seguindo quase literalmente os passos do original, o filme não atinge a intensidade do livro por uma série de razões. Mas me pergunto: por que Meirelles não consegue (e isso me parece mais grave) encontrar o tom para uma trama com a estrutura de uma descida ao inferno? Por que ele não consegue bancar completamente esse premissa, explorá-la em profundidade? Por que ele parece amedrontado por ela?

Durante a produção do longa, Meirelles falou em amaciar a violência do longa para não espantar o público. A opção (não serei eu a dizer se certa ou errada) está lá, colada em cada uma das cenas. As imagens passam uma sensação de assepsia capaz de amenizar o peso até da seqüência em que cegos derrapam nas fezes espalhadas pelo corredor. A fotografia de César Charlone, que embranquece quase todo o filme, é no máximo uma boa idéia – que, além de provocar cansação durante a projeção, acaba empetecando a crueza das situações.

Nesse sentido, é um filme de Fernando Meirelles. Mas eu gostaria de ter visto algo como O jardineiro fiel, em que o diretor precisou se aventurar para além da trama original para encontrar o filme que procurava. Talvez por excesso de reverência do diretor ao escritor, não consegui encontrar o olhar de Meirelles neste Ensaio sobre a cegueira – e muito pouco do de Saramago.

Só vi de relance, nas cenas finais. No desfecho, transparecem tanto a ironia amarga do escritor quanto a esperança desconfiada do cineasta. É um momento de beleza dentro de um filme correto, que cumpre um papel quase burocrático de adaptar uma obra literária (e que, em alguns trechos, parece mesmo o piloto para um novo seriado global-chic de J.J. Abrams).

Ao sair da sessão, continuei a ler o livro de Saramago. Como se nada de extraordinário tivesse acontecido.