Dia: junho 18, 2008

Mundo cão

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Acho que penso nos cachorros um pouco como uma humanidade que tivesse evoluído diferente. Não consigo deixar de olhar com espanto para alguns vira-latas, como se fossem filósofos pré-socráticos, figuras meio beckettianas espalhando sua vagabundagem por aí. Deixarem-se atropelar com tanta facilidade multiplica ainda mais sua indiferença quase piedosa por nós, como se não conseguíssemos atingi-los de fato.

Ontem, no caminho para a mostra do Robert Altman, acabei na exposição Fala, do Nuno Ramos, em exibição aqui no Centro Cultural Banco do Brasil. Muita gente reclama, acha feio, diz que “não é arte”, não entende nem quer entender as lápides e os urubus. Normal. Na entrada de um dos setores, duas grandes esculturas de sabão trocam palavras como se fossem cantores de ópera. Aí, já há quem saia xingando a mãe do artista plástico.

O que me acertou no peito foi o Monólogo para um cachorro morto. Quem puder ver, veja. Num pequeno monitor, espiamos o pobre animal estirado à beira de uma estrada. O bicho é contemplado por um micro system, de onde sai um texto fúnebre. Podemos tentar ler esse texto entre duas placas de mármore, mas não conseguiremos. Não sei se foi essa a intenção do artista (não conheço a obra, e só sei o bêabá das artes plásticas), mas olhar aquela imagem estática e ouvir aquela fala por uns cinco minutos foi o suficiente para embrulhar meu estômago. Quase deixei o filme do Altman pra lá (e Buffalo Bill está mais para Pret-a-porter que para Short cuts). Depois li o que o Nuno Ramos tinha a dizer sobre cachorros e atropelamentos e…

Claro que pensei no Simba, meu golden retriever que nunca fez mal a ninguém, mas o desconforto nem veio daí. Não sei se onde veio, mas não foi daí.

‘Með suð í eyrum við spilum endalaust’ Sigur Rós **

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Sigur Rós e eu: colegas distantes.

Nos encontramos a cada três anos, e a conversa costuma durar pouco. “Você por aqui?”, nos cumprimentamos. Como que diante de espelhos, notamos: estamos ficando velhos. Mas, surpreendentemente, sempre parecemos muito iguais ao que éramos antes. Eu: um ou outro cabelo branco, mas o olhar de um adolescente assustado. Sigur Rós: uma ou outra ruga, mas a eterna aparência de quem acabou de acordar depois da noite mais melancólica.

Desta vez, porém, foi um pouco diferente. No nosso quinto encontro em onze anos, ele parecia outro. “Te conheço?”, cheguei a perguntar, desconfiado. Parecia que eu estava diante de uma outra pessoa. No novo álbum, o Sigur Rós se apresenta como que disfarçado: na faixa de abertura, parecem mais enérgicos que de costume, deslocados do frio da Islândia para uma espécie de culto tribal africano (ou para a vizinhança do Animal Collective, vá saber). A segunda soa mais animada que de costume, uma espécie de folk psicodélico. A tristeza, pergunto-me, finalmente foi-se embora?

(É só uma sensação, já que continuo sem entender uma palavra do que me colega diz).

Antes de tirar minhas conclusões, aguardo um pouco. Os traços no rosto voltam, lentamente, a parecer familiares. É lá pela metade do álbum, numa faixa longuíssima (e tristíssima) chamada Festival, que o reconheço. Estamos nós, de novo, no mesmo lugar. Eu: o menino assustado. Sigur Rós: os homens à beira do precipício.

Cansado de máscaras, o disco segue cinza da metade para o fim. Entendo a beleza dessas melodias, mas a conversa não dura muito. No máximo, o encontro serviu para que o Sigur Rós me prometesse uma transformação mais profunda. Como se me preparasse para o resultado de uma cirurgia plástica. “De próxima vez, você vai passar por mim sem saber quem eu sou.” Respondo à provocação com indiferença. Ainda falamos idiomas diferentes. Admiro, mas por enquanto só admiro, esse colega distante.