Dia: junho 17, 2008
Joy Division **
Quanto mais filmes assisto sobre Joy Division, menos conheço a banda. Sem exagero. “Como foi o processo de gravação de Closer?”, perguntam a Bernard Sumner neste documentário. “Foi supertranqüilo”, ele devolve. “Vocês lembram de como Ian Curtis escrevia obras-primas como Shadowplay?”, e Peter Hook responde: “Não sei… Deixa eu ver aqui com meus botões… Ah, o Ian era um sujeito normal.”
Certo. Um sujeito normal. Aposto que sim. Um sujeito normal, chapa, gente boa e amigão. Mas um sujeito que transformou radicalmente o rock do final dos anos 1970 e ainda é uma das principais referências para qualquer bandinha nova criada em porões de Nova York, Berlim, Brasília ou Malásia. Quer mais? Dois dos principais álbuns da história do rock foram escritos pelo brother – Unknown pleasures e Closer, os dois únicos discos do Joy Division. É tudo? Um sujeito normal?
Control, tão dedicado às pendengas domésticas do compositor, já era decepcionante. Já Joy Division, ainda que competente, chega a soar enigmático. Todos os entrevistados do documentário de Grant Gee (de Meeting people is easy, do Radiohead) falam pelos cotovelos. Mas não acrescentam um só detalhe novo a uma história que os fãs da banda já conhecem muito bem. Pior: quando os convidados podem, a simplificam. “Não gosto de Unknown pleasures. É um disco sombrio demais”, resmunga Sumner. Ah. Verdaaaade? (inclua aqui o efeito sonoro de um bocejo).
E aí inventam de perguntar a Peter Hook sobre a postura de Curtis no estúdio: “Ele era superfun“, resume. Ok. Das duas, uma: ou eles se esqueceram de tudo o que viveram (uma alternativa plausível), ou não querem contar absolutamente nada de muito importante. De qualquer forma, conseguem: Joy Division é um filme que cumpre uma certa função didática, agrada pela quantidade de imagens de arquivo, situa bem a banda no contexto de uma cidade em ruínas e, finalmente, tem um design soturno de um videoclipe do Depeche Mode. Mas, vejam bem: se o Joy Division era só isso, um esquisito acidente de percurso comandado por um sujeito normal, estou perdido – alguém vai pagar pelo tempo que gastei com uma das minhas bandas favoritas?
O escafandro e a borboleta ***
Eu também me perguntei, há mais ou menos um ano: “Numa edição de Cannes com Tarantino, Van Sant e os irmãos Coen, o melhor diretor foi mesmo Julian Schnabel?”
A estréia de O escafandro e a borboleta (e eu pensando que nunca veria esse filme) traz pelo menos uma resposta à pergunta. Antes de mais nada, antes de elogios e críticas, notemos o seguinte: este é um longa que se mostra, que chama atenção para si próprio. Ele grita, como antes gritaram Dogville ou Pulp fiction. Ele cobra nosso apreço. Entendo a revolta do cineasta ao descobrir que a cria não levaria a Palma de Ouro. Como assim? Este é um filme que devia se chamar Palma de Ouro.
O que não conta como mérito nem como demérito. A verdade é que O escafandro e a borboleta carrega um selo de “novidade” muito atraente – no dia-a-dia de um festival de cinema, maratona de imagens muitas vezes redundantes e/ou banais, um filme “diferente” assim deve mesmo cair como um suspiro, um intervalo para recreio.
Mas o que há de novo? Na primeira metade da narrativa, a câmera de Schnabel adota o ponto de vista de um homem paralisado por um derrame, que não fala nem demonstra emoções. Ele só consegue piscar um dos olhos, quase sempre embaçado por reflexos e sombras. O filme nos convida a uma experiência física, dolorida mesmo. Espiamos o mundo por uma fresta enevoada. Se tivesse adotado esse método por duas horas, a sensação de assistir ao longa esbarraria no insuportável (apesar de que a fotografia cirúrgica de Janusz Kaminski faça o máximo para encontrar flashes de beleza nessa lente turva).
Eis que, mais ou menos na metade do filme, a câmera microscópica se afasta do protagonista, um editor de moda rebaixado à condição de quase vegetal. O filme vira outro, menos claustrofóbico, mais convidativo. É possível acusar Schnabel de não ter levado a proposta inicial às últimas conseqüências, mas a mudança de perspectiva afrouxa a trama e traz novas possibilidades para a narrativa. “Sou todo memória e imaginação”, afirma o personagem. A partir daí, o cineasta encontrará imagens para a consciência daquele homem. Em uma das cenas, ele sonha beijar uma mulher na areia da praia. Em outra, se lembra do dia em que barbeou o pai, etc.
É nesses trechos mais líricos (e, para meu gosto, às vezes excessivamente sentimentais) que Schnabel remete à cinebiografia anterior, Antes do anoitecer, também uma colcha de referências, licenças poéticas e impressões vagas. Na tentativa de entrar (literalmente) no personagem, O escafandro e a borboleta revela muito da obsessão do diretor por buscar retratos que fujam de fórmulas de dramaturgia, que traduzam verdadeiramente as especificidades dos personagens. No caso deste filme aqui, a missão parece ser a de ressaltar a humanidade, o sangue quente, o humor ácido e a paixão que pulsam num homem aparentemente inerte.
Schnabel não é o melhor dos diretores. E este é um filme de idéia. Uma ótima idéia – mas o importante é como, em muitos momentos, conseguimos ouvir o coração que bate dentro dela.