O gângster **

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Aos fatos: em uma fase muito complicada da carreira (e isso é o mínimo que temos a dizer de um álbum magrelo como Kingdom come), Jay-Z assistiu ao filme O gângster e se identificou terrivelmente com a saga de Frank Lucas – o traficante negro que, nos anos 70, se transformou em poderoso chefão às custas de heroína importada no embalo das tropas norte-americanas da Guerra do Vietnã. O rapper curtiu tanto o filme que escreveu um disco inteiro com uma mistura das história de Frank com, como de costume, as encrencas Jay-Z.

A apropriação enviesada, vocês sabem, rendeu um dos belos álbuns de 2007: um thriller cantado, uma graphic novel sangrenta sobre a ascensão e a queda de um barão do pó. Para remeter ao auge do sucesso de Lucas, por exemplo, Jay-Z fez Roc boys, uma canção que passa toda a excitação que um sujeito podre de rico e entupido de pó e rodeado de moças generosas (ok, vocês imaginaram o lugar-comum) deve sentir.

Qual não foi minha surpresa quando descobri que… o disco é melhor que o filme!

Claro, são projetos muito diferentes e cá estou eu delirando novamente sobre asneiras (e é nessas horas que fico muito feliz de lembrar que ninguém lê este blog), mas não consigo deixar passar o fato de que o álbum tudo tem, absolutamente tudo o que falta ao filme: pegada, tesão, feeling, punch, alma, culhão ou a palavra que você quiser usar para descrever essa característica abstrata. Muito fácil analisar um filme a partir da combinação de elementos técnicos e supostos conceitos estéticos, mas e quando nada disso dá conta de explicitar o sentimento de insatisfação? Apelemos, então, a comparações esdrúxulas e ao que mais for preciso.

A trama do filme é mais ou menos a mesma do disco. Com uma diferença fundamental: enquanto Jay-Z se concentra exclusivamente em Frank Lucas (é o alter-ego, o homem que sobe ao céu e desce ao inferno e rappers adoram essas metáforas bíblicas), Ridley Scott e o roteirista Steven Zaillian filtram a história real em um embate entre bandido e mocinho – esse último, representado pelo policial Richie Roberts (Russell Crowe), talvez o único tira honesto de Nova York.

Quando um filme gasta quase três horas de duração para empurrar o herói de encontro ao vilão – e aí perceberemos, então, que um depende do outro, que são figuras complementares -, impossível não lembrar de Fogo contra fogo. Mas O gângster me pareceu mesmo um primo de Os infiltrados, com o retrato meio over de uma América corroída pela corrupção.

É possível encontrar alguma profundidade psicológica nesses personagens, mas você terá que se esforçar um pouco. O Frank Lucas de Denzel Washington é a encarnação do individualismo ianque, a face perversa do sonho americano. Já Richie está aí para provar que a honestidade dá pé. Scott filma esse embate de códigos morais com mão pesada, esquematismo que dói de ver (a primeira metade de filme não faz muito além de alternar didaticamente as trajetórias dos personagens). Felizmente, esses podres anos 1970 são fotografados pelo ótimo Harry Savides – e daí as boas lembranças de Zodíaco, que dão rasantes aqui e ali.

Mas filme de gângster com pompa e circunstância? Deixem para Jay-Z.

2 comentários em “O gângster **

    Fernando disse:
    janeiro 28, 2008 às 11:53 pm

    Quando se fala em “mão pesada” é o mesmo que se falar em “piloto automático”?

    Tiago respondido:
    janeiro 29, 2008 às 12:00 am

    Eu usei no sentido de “falta de sutilezas” mesmo.

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