Dia: janeiro 13, 2008
O suspeito **
Já leram Homem em queda, do Don DeLillo? Se não leram, deveriam. Não sei (e, honestamente, não quero saber) se é a melhor obra sobre a América pós-11 de setembro. Mas é uma das poucas que buscam um viés íntimo, umbilical para a tragédia. Em meio ao drama do homem engravatado que escapa da destruição das Torres Gêmeas e sai desnorteado em busca do apartamento da ex-mulher, DeLillo imagina os preparativos de um dos terroristas que se espatifaram no vôo comercial. Esse trecho do livro não dura três capítulos muito enxutos. É contraponto distante, um eco que quase não se ouve.
Filmes sobre o tema são geralmente o oposto disso. Amplos, explícitos, eles querem abraçar com as pernas todas questões políticas que estampam manchetes em jornais. Não vai aí juízo de valor, mas uma constatação desanimada: fico com a impressão de que o cinema norte-americano, com duas ou três exceções, ainda está em uma etapa inicial, primária de identificação do Dia em que a Terra Parou. Ainda tateia o acontecimento sem saber exatamente como transformá-lo em ambiente para que tramas e tipos respirem, se movimentem sem a necessidade de erguer bandeiras ou simbolizar esse ou aquele slogan.
O suspeito é mais um aluno dessa pré-escola – um filme que deixaria DeLillo entediado, em busca dos traços de humanidade que esta ficção insiste em negar aos personagens.
Até o terrorista de Homem em queda, que se sustenta sobre um fiapo de descrição psicológica, parece (ironicamente!) mais vivo que todos as peças usadas pelo sul-africano Gavin Hood para compor o painel deste filme. É um rapaz que, enquanto não coloca em prática a missão de se esfarelar em Manhattan, caminha pelas ruas de países deseconhecidos como um vulto – mas com sangue nas veias, prestes até a se apaixonar. “O nome da mulher era Leyla. Olhos bonitos e um toque atrevido. Ele disse a ela que ia se afastar por um tempo, mas que voltaria com toda certeza. Logo ela passaria a existir como uma lembrança incerta, e por fim deixaria de existir.” (e assim, elegantemente, DeLillo encerra um capítulo).
Comparar com Gavin Hood (ou com, sei lá, Oliver Stone) é covardia. Mas são projetos muito diferentes. No mundo onde DeLillo só vê incertezas, Hood encontra um tabuleiro com regras bem definidas, desprovido de qualquer mistério. Sem muito esforço, conseguimos identificar vilões (a poderosa de Meryl Streep, que autoriza a prisão de um inocente, acusado de terrorismo na África), santos (a mulher do homem torturado sob ordens do governo norte-americano) e heróis (o agente da CIA de Jake Gyllenhaal, chocado com a insensibilidade dos próprios chefes). Mas me pergunto se devo exigir profundidade de um filme que se pretende apenas ilustração de uma medida autoritária do governo dos Estados Unidos: a “rendição extraordinária”, que permite a prisão e interrogatório, em terra estrangeira, de suspeitos de terrorismo.
Os limites de Hood são muito estreitos – e já havíamos confirmado isso no simplório Infância roubada. Mas sejamos otimistas: O suspeito, de certa forma, representa um avanço para o diretor. Agora ele é capaz, por exemplo, de compor pelo menos um momento iluminado: depois de narrar com distanciamento uma cena de atentado de um homem-bomba, ele volta àquele mesmo momento nos trechos finais do filme – agora, com uma câmera mais solta, atenta aos detalhes que detonaram o surto de violência. Nesse retorno ao lugar do crime, o que vemos é uma comédia de erros: uma série de pequenos equívocos e trombadas, um espetáculo desorganizado e infantil de destruição.
Tenho certeza de que Hood não queria que eu me prendesse tanto a esse jogo de erros (tanto que, depois da cena, ele se alonga em um desfecho derramado, redundante). Mas taí o único detalhe do filme que vale por um parágrafo inteiro do livro de Don DeLillo – e acredite, é grande elogio.