Dia: dezembro 29, 2007

A coragem de amar, Crimes de autor *

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Disseram hoje que sou um tipo especial de esquizofrênico, já que me divido por três. O Tiago que escreve neste e em outros blogs – isso tudo de acordo com o tal sujeito indeterminado – seria muito diferente do homem que escreve para comprar o pão de cada dia, ou daquele outro que tenta se expressar oralmente. Eu nunca havia parado para pensar com paciência nesse assunto. Sou três em um? E, se sou três em um, estaria eu em promoção?

Questões. Acontece que, depois de dar três largas voltas ao redor do nada, cheguei à conclusão de que não há nada muito atípico ou sensacional (quisera eu) nessa multiplicidade de discursos ou de personas ou de formas escolhidas para encenar uma determinada situação ou de sei lá o que. Não escrevemos um bilhete de amor da mesma forma como preparamos uma carta de demissão. Não planejamos uma redação de vestibular com o mesmo desleixo como copiamos uma receita de bolo. Somos todos camaleões da palavra – até por obrigação, por necessidade. Mas entendo que essa obviedade possa sim parecer algo muito estranho, da mesma forma como o substantivo “maionese” ficará extremamente esquisito quando você decidir admirá-lo com toda a concentração do mundo por uns cinco minutos. Outro dia reclamei da minha prima de 11 anos, que escreve na internet com a mesma destreza de uma analfabeta funcional. Ela sabiamente retrucou: “Tio, não sou desse jeito toda hora!”

Como insisto nesse tipo de jogo mental, passei a sessão inteira de Crimes de autor com esses devaneios tolos quicando nos meus neurônios. Assumo: filmes de Claude Lelouch não costumam fisgar minha atenção. Sempre assisto a eles com o distanciamento curioso de quem espera o grande malabarismo de um peixe amarelo no aquário gigante. Me perdi no meu umbigo também por outra razão: como já havia indicado em A coragem de amar (uma espécie de rascunho gorduroso para o filme seguinte), o cineasta parece obcecado pela forma como o cinema e as pessoas encenam, mudam de tom, vestem-se em personagens, se dividem em duas ou três. É um belo tema, infelizmente mastigado por um diretor que costuma apelar a todo tipo de artifício boboca que tem à disposição.

Lelouch adora fazer com que os personagens cuspam lindas frases de papel-de-carta. “Se fosse possível descobrir a data e a hora da sua morte, você gostaria?”, questiona em A coragem de amar (uma comédia romântica musical com canções que, de tão irritantes, grudam nos mais horrendos pesadelos). “A maior felicidade está nas primeiras vezes”, dispara em Crimes de autor (e eu duvido muito disso, já que, para ficarmos num exemplo mórbido, não fui nada feliz quando vi um cadáver pela primeira vez). Lelouch também é fã de reviravoltas metalingüísticas – e aí aquele tipo inocente que caminha de locação em locação pode se revelar, na décima pirueta do roteiro, o autor da biografia do diretor de um filme inspirado na vida de um primo de Lelouch. A diversão está em servir o rocambole, e não em recheá-lo com reflexões minimamente instigantes.

E, se meu vocabulário atualmente parece muito limitado a termos gastronômicos, talvez essa conte como uma nova persona. A quarta? Chef Superoito, a seu dispor?